Certa noite, um piano

Existem essas noites atiradas ao sul, que fazem nascer crianças. E existem as outras, as frias, que nos ensinam que o corpo é menos triste quando aninhado sobre si.

Naquela noite, existia um homem, Xavier, e existia o seu medo. Pisava de lágrimas o cemitério de edifícios ali inaugurado — uma cidade rebentada nas vísceras pela força bruta de três bombas. A guerra surpreendeu com estrondo, sempre cega na matança. Explodiu num sopro de lume, feroz, pousou num hálito de pó, devorador de escombros.

Não é o silêncio tátil que apavora Xavier: os músicos, como é sabido, vivem sempre inundados de ruído por dentro. Teme, isso sim, as espingardas ocultas na névoa, a cólera vã de um inimigo que desconhece e que não percebe.

No entanto, é uma ausência que o agoniza. E é por isso que prossegue caminhando, tateante na incerteza da noite.

Há quem se habitue a habitar um nome; é um mistério para o qual não temos resposta. A Xavier, Inês soa a acorde sustenido. País de ternura e inquietação, Inês, paradoxo inteiro e limpo. 

Procura nas ruínas essa sua morada. Mas apenas a tosse abafada, os pulmões carregados de gente, interrompe a penumbra de veludo.

Chegou, por fim, a uma viela sem saída, a fazer lembrar isto da vida, e deixou-se espantar. Como um milagre, um piano repousava, imaculado e luminoso, sobre os destroços do cenário de guerra. Não teve dúvidas, aguardava-o. Sentou-se, pousou as mãos nas teclas com leveza aracnídea, sentiu o conforto de quem chega aonde pertence e ali se verteu.

Foi nessa soporífera superfície da música que encontrou espaço de diálogo com Inês. Foi essa a linguagem que lhes abriu a porta ao toque da pele, lugar onde não precisavam de se abreviar. A música, claro, a única forma de a chamar. 

Dolente, uma primeira nota impregnou o ar daquilo a que, à falta de termo aceitável, podemos denominar de ‘oposto de guerra’. Essa oposição ganhou corpo, espessura e cadência, inscrevia-se delicadamente na mudez da escuridão. Uma bossa nova amornando a madrugada por fora, aquecendo-lhe os pés a partir de dentro. 

De súbito, estendeu o olhar à rua e avistou-a. Inês, o precipício e o fim, aparecia toda vestida de gestos líquidos. Bailava com o espírito alimentado de fogo, lenta, sedutora, rebelde. Com o coração acelerando a ponta dos dedos, Xavier deixou de perceber o espaço e o tempo acontecidos fora daquela intempérie, presença tão repleta de alto mar. 

Questionava-se, embebido de deslumbramento, em que lugar do corpo teria ela guardado aquela dança. Inês, que lhe ensinara o indizível, afiava-lhe agora os dentes de desejo. Por isso, ainda com um acorde bemol ecoando no beco, deixou o piano para que dela pudesse chegar perto. 

Nesse movimento, um laser vermelho, vestígio primeiro de fatalidade, pousou-se-lhe no peito. O estrondo seco e bruto da espingarda, de imediato inscrito na sua biografia, não demorou.

Acordou invadido de lágrimas glaciares. Olhou para o lado, ainda a ausência aflitiva de Inês. Que piano lhe aqueceria as noites? Precisava de adormecer a ferida insidiosa que lhe atravessava a carne, Inês. Aninhou-se então sobre si, bem recolhido sobre a pele. Aí dentro, encontrou só a tristeza.

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