O Livro que eu não li

O título – Um Pouco Mais de Azul – era chamativo. Pertencia à colecção que durante a adolescência e início de idade adulta me fascinou: Ciência Aberta, da Gradiva, destapava uma larga amplitude no espectro de entendimento para um leitor em busca de divulgação científica, do mais leigo ao maior especialista. Na minha escala, posicionava-me algures entre os 30% e os 40%: frequentava o agrupamento Científico-Natural, mas na universidade verti a sede de conhecimento para a Matemática, deixando cair a Física, Química, Biologia ou Geologia.

Foi numa reportagem do Telejornal, aquando da saída de Uma Breve História do Tempo de Stephen Hawking, publicado em 1988 (e traduzido para português talvez dois ou três anos depois), que fiquei fascinado com a ideia de podermos viajar no tempo. Comprei o livro, atirei-me à leitura para desistir antes das dez páginas: os conceitos desconhecidos pareciam-me hieróglifos.

Mas algo ficara: nas primeiras páginas, Hawking mencionara Os Três Primeiros Minutos do Universo, de Steven Weinberg, livro que também comprei e que até hoje nunca li (apesar de o ter iniciado duas ou três vezes).

A Ciência é um prédio em permanente construção. Se a divulgação científica representar a aprendizagem do processo de construção, não é normal esta começar pelo quarto ou quinto andar. Foi o que tentei fazer.

No 10º ano, na disciplina de CTV (Ciências da Terra e da Vida, 15 anos, 1996), o stôr Rui Farinha projectou em três acetatos uma coisa que ainda hoje me fascina e que ilustra a nossa pequenez na escala de tempo do Universo: o Calendário Cósmico. Da autoria de Carl Sagan, nele o autor, divulgador e cientista americano transpõe um ano terrestre para (o que se pensava ser) a idade do Universo. O segundo 0 do dia 1 de Janeiro coincidia com o Big Bang. Nele, fiquei atónito com o facto de a Terra ter apenas surgido no dia 14 de Setembro ou do início da reprodução sexuada surgir a 30 de Novembro. O acetato seguinte ampliava o mês de Dezembro, e continuei estarrecido ao tomar conhecimento que os primeiros vertebrados surgiram no dia 18 e – pasme-se – a extinção dos dinossauros aconteceu no dia 30! Nova ampliação para o dia 31 de Dezembro: os primeiros seres humanos nasceram às 22:30 e a agricultura desenvolveu-se às 23:59:20!

O meu pai falou-me, então, n’O Cosmos, série hoje lendária produzida por Sagan em 1980 e que deu origem a um livro (também na Ciência Aberta). Na estante do corredor, descobri Os Dragões do Éden, livro que o autor havia escrito na década de 70 sobre o desenvolvimento da inteligência e com o qual recebeu o Pulitzer. Experimentei a escrita envolvente de Sagan e o pasmo que é olhar para a Ciência como forma de interpretação da realidade, o seu método, a consciência da nossa pequenez, e o tanto de que ela tem noção sem conseguir ainda unir (a teoria unificada que Hawking toda a vida perseguiu). A dada altura, deparei-me com o calendário cósmico que eu havia visto nas aulas de CTV (mais tarde percebi que Sagan o reproduzira n’O Cosmos)!

Um Pouco Mais de Azul foi descansando nas prateleiras das livrarias que eu frequentava. Olhava para mim. Também eu o perseguia, ficando por vezes parado a admirá-lo, chegando mesmo a tocar, qual stalker rebarbado ao ataque, sem nunca consumar a compra. Uma vez esteve quase, mas voltei à prateleira, depositando-o no lugar que deixara vazio: a semanada não esticava e as escolhas percorriam a ramificação infinita de livros e filmes que tinha à disposição (tivesse eu optado por comprar outras cassetes e trazido outros livros e não sei até que ponto a minha vida teria sido diferente). A face do autor, careca com longas barbas brancas, envolvia o mistério (o stôr Rui dizia que ele era fantástico) sobre quem eu apenas sabia o nome: Hubert Reeves.

Trilhei o caminho por alguns livros da Gradiva, percorrendo os muito bons como Rodas, Vida e Outras Diversões Matemáticas, E=mc2 – A Biografia da Equação Mais Famosa do Mundo, oferecido pelo Emanuel, meu colega de estágio, A Experiência Matemática, presente do Carlos Filipe, amigo do meu pai, O Homem que Só Gostava de Números (sobre o qual já aqui escrevi) ou finalmente Uma Breve História do Tempo, que li mais tarde, emprestei à Albertina, estagiária de História na mesma escola, para não mais lhe pôr a vista em cima; até a O Último Teorema de Fermat, ou as diversos obras de Jorge Buescu ou Carlos Fiolhais.

A divulgação científica foi fugindo ao meu interesse, cujo namoro com as histórias mais ou menos ficcionadas se foi tornando num caso sério. Um Pouco Mais de Azul ficou atravessado no lugar das coisas que poderiam ter acontecido. Até há poucas semanas.

Descobri nos últimos cinco anos a Biblioteca de São Domingos de Rana como um templo para a escrita. Com a recente mudança de casa e esvaziamento das prateleiras, muitos livros foram entregues à Biblioteca. A dada altura, esta passou a ter o canto das trocas; trouxe alguns nesta limpeza que fiz à casa, e na última romaria ao templo, vejo Um Pouco Mais de Azul. Troquei-o sem pestanejar. Numa das próximas leituras regresso à Ciência. Desta vida não passa.

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