A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe

A velhice é o lugar no podium que a vida nos acena a cada dia. Um troféu que, paradoxalmente, todos aspiramos receber, mas que ninguém tem pressa de o fazer. Até porque, ao mesmo tempo que o tempo nos traz a serenidade da maturidade e a sabedoria da experiência, ironicamente vai-nos tirando tempo a todo o tempo, aproximando-nos do tal triunfo, que é a velhice.

E se é verdade que o máximo expoente da vida é ter uma velhice de qualidade e conforme escolhemos ter, é mais verdade ainda que a velhice representa a entropia de uma máquina que, inevitavelmente, entra em desgaste. Julgo ser este o ponto nevrálgico que Valter Hugo Mãe tão intensa e assertivamente destaca em a máquina de fazer espanhóis, um livro cheio de sentido e que nos põe a todos em sentido.

A narrativa gira em torno do senhor Silva, um barbeiro de 84 anos, fiel a um amor que durou meio século e que só terminou com a morte. Ou melhor, nem terminou… Na verdade, esta personagem central, ao longo da narrativa, nunca deixa de sofrer as consequências da perda da sua mulher, o amor da sua vida, vendo-se confrontado com o desafio de sobreviver a esta dura perda e ao processo de entropia da máquina biológica cuja intensificação o faz caminhar para o vazio até ao seu último estágio.

Como se não bastasse a perda da sua amada Laura, o senhor Silva foi internado num lar de terceira idade, com o nome eufemístico de Feliz Idade. E é lá, no Feliz Idade, juntamente com outros utentes residentes, que o senhor Silva ainda é capaz de se reinventar e encontrar alegria, amor e humor. Uma alegria complexa, de difícil aceitação; um amor de amizade entre os seus colegas utentes, companheiros de “casa”, de conversas, de peripécias, de pequenas alegrias e de tristezas; um humor sarcástico e até rude, mas, em boa verdade, realista. E, por fim, a compaixão do Américo, auxiliar do Lar, e do Dr. Bernardo, médico daquela última casa dos seus 93 residentes. Ainda que de uma forma peculiar, o livro comprova a validade do ser humano até ao seu último segundo, mostrando-nos que é possível encontrar felicidade até ao fim da vida.

Em a máquina de fazer espanhóis o autor intercala a condição humana da velhice com outros aspectos da vida, aliviando a narrativa e desviando o leitor para outras realidades, passando pela revisão de um passado, e de toda uma geração, pelos valores da sociedade, pela política, numa espécie de estado da nação, e também pelo fascismo dos bons homens.

Nesta obra, que tem tanto de delicada quanto de sincera e reflexiva, é fácil perceber que o processo de envelhecimento parece apagar toda a bagagem transportada até à velhice, trazendo a este estádio da vida tudo o que não deveria trazer: a falta de uma política de inclusão e a inadaptação da sociedade a uma família que não consegue albergar mais do que uma geração e que, por isso, convida a geração anterior a viver num lar de terceira idade.

Ao relatar a história de um senhor português, Valter Hugo Mãe capta a identidade de um povo, os seus costumes, a sua história e o amor pelo seu país; de muitos Silvas, Pereiras e tantos outros portugueses, que em comum partilham uma alma lírica, às vezes alegre outras vezes melancólica.

Uma obra tão viva e real, que mais parece ter sido vivida por Valter Hugo Mãe, um escritor que é capaz de convidar o leitor a entrar na narrativa, sentindo-a, vendo cada espaço nela descrito e vivendo a história como se fosse sua. Neste romance, 5 sentidos é pouco para quem nos faz sentir tanto.

nunca eu teria percebido a vulnerabilidade a que um homem chega perante outro. nunca teria percebido como um estranho nos pode pertencer, fazendo-nos falta. não era nada esperada a constatação de que a família também vinha de fora do sangue, de fora do amor ou que o amor podia ser outra coisa, como uma energia entre pessoas, indistintamente, um respeito e um cuidado pelas pessoas todas.

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