A Sabedoria do Polvo (2020) Netflix

Um dos meus herdeiros (à data do acontecimento) tem 11 anos. Tem as suas cenas, os seus gostos, e para orgulho de maman, é todo bichos, coisas viscosas e muito hands on: vê um nudibrânquio (vulgo lesma do mar), pumba mão naquilo! Lagarta peluda ou bicho-pau no muro, nariz encostado e a ponta do dedo que não resiste a toc toc… é isto. Ora, no dia em questão, um dia de semana, jantar tomado, rabos no sofá, não apetece mais notícias nem do Mundo nem caseiras, zapping seletivo, portanto: nada de filmes, espreitadela rápida aos canais de culinária (quando eu era pequena babava com as fotos do livro de receitas da Miréne “O Tesouro das cozinheiras”. Passei a pobreza aos miúdos que também se saciam pelos olhos… mea culpa), e parou-se onde se queria: num documentário da vida animal. Parecia uma coisa normal, igual aos 198457534057 que já vimos.

Não era.

O narrador era um experiente realizador de documentários que se vê afogado num período de profunda depressão. Alguém que tem tudo, uma família que o ama e a quem ama de volta, uma carreira de enorme sucesso… mas é quase sempre assim, não é? Perdeu “aquele” brilho.

O chamamento do mar. É nas idas à praia, àquela praia sul-africana (uma floresta de algas, “kelp forest” é a denominação destes locais) que elege como local de mergulho pela dureza e força das vagas que desafia o corpo e se obriga à reflexão. Num desses dias é arrebatado por um encontro que mudaria a vida dele. Perfeitamente camuflado entre conchas e pedrinhas, um polvo. Inicialmente tímido, medroso e desconfiado, o molusco marinho intriga-o. É um ser estranho, dele se diz ser extremamente inteligente. Quão inteligente? É dado um passo, há um toque entre ambos. Ventosas que acariciam pele. Acariciam para depois se revelarem surpreendentemente fortes.

Há um momento de fascínio mútuo, um misto de curiosidade e medo entre ambos. Um toque, uma interação, um clique. O mergulhador pratica apneia, não usa botija e tem que subir à superfície. Quando volta a descer não espera encontrar o polvo, mas ei-lo em todo o seu esplendor a aguardar mais conversa.

“E se eu voltar todos os dias?” – são considerações do próprio que encontrou uma narrativa para aqueles dias e um objetivo imediato, a curto prazo.

E é assim, em mergulho sem ar de reserva, no oceano profundo, turbulento, que a viagem se revela também interior, agitada, deslumbrada e muito, muito de dar, mas ainda mais de receber.

“My Octupus Teacher” de Phillippa Erlich e James Reed, Netflix, 2020 é, na minha humilde opinião, das peças de Vida Selvagem mais extraordinárias captadas em vídeo. O conteúdo das imagens, as palavras despudoradas de quem sabe que abrindo a intimidade dos próprios sentimentos está a escancarar as portas de um dos maiores flagelos da Humanidade contemporânea: a saúde mental.

Se os que estavam alapados no sofá “leram” as mesmas mensagens? Provavelmente não. Sinto-os crianças curiosas, animadas e entusiasmadas, não creio que processem o conceito de depressão… mas o resto? Ah sim! A descoberta da suprema importância do outro, mesmo que seja um animal – se calhar, principalmente por ser um animal! Outro ser vivo, um ser senciente. É uma expressão muito recente. Senciência é a capacidade dos seres de processarem sensações e sentimentos de forma consciente. É, por outras palavras, a capacidade de experienciar perceções conscientes do que acontece e do espaço envolvente.

“A sabedoria do polvo” em português, venceu o Oscar de melhor filme documentário em 2021. Nesse ano recebeu 14 nomeações, dos Bafta ao Festival Internacional de Cinema Documental de Guangzhou e arrecadou 10 galardões!

Preparem-se para as camadas que este documentário tem. Preparem-se, mesmo. E deixo o spoiler: a Natureza é cruel mas também é Mãe.

Por ser dia de semana (e eu ser uma tirana assumida!) o documentário ficou a meio. A parte mais difícil deste filme ainda está para vir. Eu sei como se vai desenrolar a história e nem por isso sei como vou reagir. Mas estou com maior expectativa em relação às reações dos miúdos, confesso. Conto aprender muito com eles e com a forma como as crianças encaram as coisas.

Mas acima de tudo tenho que me mentalizar que durante uns meses não vai haver Polvo à Galega nem à Lagareiro cá em casa! Buááááááá. Desejem-me sorte para os dias sombrios que se avizinham.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Diário de uma mulher mãe com muita sorte

Next Post

Róisín Murphy

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Gente Vulgar

Foi à terceira que o filme me arrebatou. Não que antes não tivesse deixado marca, mas no voo nocturno sobre o…

O Deus das Moscas

William Golding escreveu O Deus das Moscas em 1953, no rescaldo da Guerra. Com as atrocidades, difíceis de…

Filomena

Terá sido na Primavera de 2014 que vi Filomena com a Angélica, no cinema do Oeiras Parque. Mais do que por…