A pergunta chegou até a mim por estas palavras. E eu fui injusta.
A minha mente foi pelo caminho errado. Lembrei-me das influencers e instagrammers que apregoam a vida que não têm a troco de likes. As food bloggers que mostram uma cozinha de sonho, para quando há um grande plano acidental, mostrarem a zona de guerra que se forma à volta. Ou pior, as que transformaram a casa num cenário permanente de clicks e lives onde ninguém se lembre de tentar viver. Lembrei-me que a maquilhagem funciona muito melhor com um plano fixo e iluminação controlada, dos dias que trabalhava nessa área e que tive que explicar a clientes que não, não as conseguia transformar na Angelina Jolie, por mais que a maquilhadora do YouTube o tivesse feito a ela própria, porque o fez em condições controladas. Lembrei-me das várias mulheres que tiram uma foto de costas direitas e logo a seguir outra numa posição menos lisonjeadora, para mostrar que a barriga faz rolinhos e a celulite aparece.
E “ataquei” a resposta por aí. Escrevi um artigo. Não fazia sentido, as palavras não fluíam, cada parágrafo discutia com o seguinte, como um condomínio problemático em que cada andar puxava para um lado. Escrevi outro. A mesma coisa. Depois percebi que estava a tratar mal uma velha amiga, e que provavelmente o karma de tal coisa não me deixava andar para a frente. Esqueci-me que não há uma fotografia, há fotografias.
Lembrei-me da minha infância analógica e das máquinas com rolos de 24 fotografias que levava para os passeios de escola, e escolhia muito bem os momentos para as usar. Das fotos de turma que se tiravam uma vez por ano. Olho para aquelas caras e ainda me lembro de quase todos os nomes, embora não saiba das pessoas. Era o mundo pré-internet e ninguém tinha últimos nomes, eram a Lili, a Joana, o Tóni. Um belo dia fui adicionada a um grupo de Facebook por alguém que me reconheceu pela minha fotografia da primeira classe.
Lembrei-me de um tempo em que os fotojornalistas e os fotógrafos de documentário eram equivalentes a estrelas de rock. As fotografias que nos chegavam de guerras, rebeliões, culturas longínquas e se tornavam ícones de coragem, superação e liberdade de expressão.
Lembrei-me de descobrir a fotografia artística aos poucos, em livros que encontrava aqui e ali, de fixar o nome Annie Leibovitz, que vinha agarrado ao de várias celebridades. De uma notícia no telejornal sobre um fotógrafo que na altura não conhecia – Spencer Tunick – conhecido por fotografar multidões nuas, vir a Portugal e de algumas dezenas de pessoas a tremerem ao frio só pela oportunidade de ficar na foto.
Por consequência, lembrei-me da primeira espécie de rede social onde partilhávamos fotografias e opiniões sobre as mesmas, bastante mais simpáticas do que as opções actuais. O dia em que partilhei uma foto de fogo-de-artifício em forma de coração vermelho por cima do Rio Douro e os elogios que ela recebeu. Disse que era apenas uma foto tirada com uma câmara digital de €50. “Show us more of what that 50 buck camera can do.” foi o comentário que ficou comigo. Seguiu-se outra, um gato preto a olhar para trás em contra-luz ao pôr-do-Sol. Um auto-retrato, tenho quase a certeza que não era uma selfie, pelo menos não nessa altura. Parecia que até tinha jeito para fotografia de baixo orçamento.
Com alguma tristeza, percebi que estava a ser injusta com os fotógrafos com quem me dou bem, especialmente aqueles que já me convidaram a passar para a frente da objectiva. Aqueles que têm o dom de ver algo em nós que mais ninguém vê e de o registar de forma permanente. A franqueza da situação pouco importa, Michelangelo dizia que a forma já existia na pedra, ele apenas a arrancava para fora. Quando vemos uma fotografia assim de nós próprios, somos o bloco de mármore e a estátua, habitamos o mesmo corpo.
A conclusão a que cheguei em todo este processo, é que a fotografia é um meio tão versátil que pode mostrar a franqueza da vida, pode mentir com os dentes todos, e pode fazer com que a franqueza seja totalmente secundária. Por isto, vai continuar a ser uma das minhas formas de arte preferidas.