Verdade ou Consequência

Desde há alguns anos que uso a expressão Sociedade Fast-Food para qualificar a sociedade em que vivemos hoje. Poderia até exagerar, mas a verdade é que as últimas semanas continuaram a provar-me que esta expressão, a cada momento que passa, vai-se tornando mais ajustada e fiel a uma triste realidade, a de que maior parte de nós não está minimamente centrado na sua vida, em si mesmo, está distanciado, tentando colocar, insistentemente, no outro a responsabilidade que está apenas nas suas mãos. Os resultados, infelizmente, estão à vista, assim como as consequências nefastas disso.

Permita-me, duma forma rápida e sucinta, contar uma pequena história real. Nos últimos meses, profissionalmente, estive a promover algumas actividades que iria desenvolver. Coloquei as informações relevantes nos sites correspondentes, informações essas que seguiram para as redes sociais exactamente no mesmo formato. Outras informações, como localização, morada, informações generalistas, chamemos, estão perfeitamente visíveis nos mesmos sites, com um acesso até bastante simples e intuitivo, ainda que numa página separada, é um facto.

Ao longo das semanas que antecederam os eventos, recebi diversos contactos pelas páginas para esses diversos eventos e não estarei, de todo, a mentir ao dizer que uma grande parte desses contactos, para além de algumas questões relevantes, continham algumas sobre conteúdos que estavam totalmente visíveis e bem explícitos nessas páginas ou nos sites. Infelizmente, não é uma situação única, pois isto acontece muitas vezes durante as semanas, por outras razões, por pura e simples preguiça e desleixo.

O resultado destas situações é um enorme desperdício de tempo e de energia, pois recebemos a mensagem e, na resposta, temos de reencaminhar para o site, onde está essa mesma informação, logo acima ou ao lado do formulário de onde mandaram essa mesma mensagem. Isto cria-nos frustração, por vezes até nos irrita, pela negligência das pessoas, até porque, se lhes suscitou interesse, então, talvez (digo eu, quem sabe?), isso justifique uma abordagem um pouco focada, mais atenta, uma leitura mais profunda, uma busca, eventualmente.

O problema é que, se esta situação é uma gota de água num enorme oceano, porque o é, apenas afectando-me a mim, não é um caso único nem sequer perto de ser o mais assustadoramente grave. Pelo contrário, isto é algo que está presente em tudo, todos os dias, nas mais diversas situações das nossas vidas, desde um contrato para um trabalho até à eleição de um cargo público. O resultado, infelizmente, está bem à vista, pois o desgaste que refiro acima expande-se para um nível muito mais elevado, onde, muitas vezes, não há um destinatário concreto, substituindo-se por uma responsabilidade que é negligenciada.

Este é um problema que o mundo tecnológico nos trouxe, com um acesso rápido e fácil a tudo, em pacotes pequenos e sintéticos que, precisamente pela necessidade de reduzida dimensão, perdem toda a informação importante e relevante, desajustam-se da realidade, criam contra-informação, discussões desnecessárias, distrações e, mais uma vez, retiram-nos do nosso centro. Acredito que não fosse, nem é, o foco do desenvolvimento tecnológico, o de criar sociedades embrutecidas e em estado grave de iliteracia funcional, mas o mundo é feito por pessoas, e são elas mesmas que, todos os dias, constroem isso, pois desde o título da notícia a um descritivo duma formação, desde a bula dum medicamento ao programa eleitoral dum partido, o importante passou a ser a síntese, não o conteúdo.

Ainda que compreenda que a síntese é necessária e importante, muitas vezes até relevante, o problema é que ela se torna populista e básica, orientando as pessoas ao engano. No entanto, a responsabilidade não é apenas do mau marketing ou de quem prepara a informação. A responsabilidade, talvez maior parte dela, está em cada um de nós, que assume e assimila, sem questionar, uma informação desprovida de conteúdo, mastigada e processada, feita para parecer bonita, mas sem qualquer tipo de utilidade.

Habituámo-nos a isso, com o advento do avanço tecnológico, com a internet e a sociedade da informação, mas não só. Há um reflexo muito mais directo e visível, mas que nos passa o lado, que tem a ver com a nossa própria alimentação. A fruta criada em estufa, moldada para ser bonita e luminosa, mas que, por não ter seguido um processo natural, tem um défice impressionante de nutrientes. No entanto, o que importa é o exterior, é a beleza, é o que é estimulado em nós, manipulando o nosso cérebro através da parte visual, fazendo-nos relevar o que é realmente importante.

O resultado desta alimentação que nos rege nas últimas décadas está à vista, um maior número de doenças, problemas que se despoletam no corpo físico sem aparente justificação, maior resistência dos vírus, porque a resposta é feita de forma sintomática e não estrutural. Da mesma forma, o resultado da alimentação informativa está à vista, e os melhores exemplos estão bem patentes nos últimos dois anos, com um Presidente dos Estados Unidos a ser um fã de comunicação via Twitter, eleito muito graças às redes sociais e à disseminação de informação direccionada, ou a eleição recente de Bolsonaro, no Brasil, um candidato que disse tudo o que o povo queria ouvir, que sintetizou muito bem um programa governamental, contraditório, em parte, às suas próprias posições e declarações, que foi eleito sem participar em debates, sem se colocar perante o âmbito mais belo da democracia, a discussão de ideias, movendo, de forma populista, os medos das populações.

Nos próximos anos, tenho a certeza, teremos as reais consequências desta sociedade fast-food, com as tomadas de consciência de muitos e a vivência concreta de outros, com a realidade a não corresponder à ficção que foi criada entretanto e, depois de extremos tocados, todos a sermos levados, muitas vezes à força, ao centro das nossas vidas, à nossa responsabilidade sobre os nossos caminhos, à factura que terá, mais cedo ou mais tarde, que ser cobrada e paga. No caso concreto que descrevi atrás, chegou ao cúmulo de pessoas que até queriam fazer as tais actividades, quando se aperceberam, já não tiveram oportunidade, tão simplesmente por não se focarem, por não se priorizarem nas suas próprias vidas, estando dispersos nas realidades que os rodeiam.

Esta até pode parecer uma crónica pessimista, negra e negativa, mas não o é, porque, no meio de tudo isto, há uma coisa fantástica que acontece, uma separação clara, uma visualização concreta, disponível para quem quiser ver, do que é o trigo e do que é o joio. Por isso, continuo a considerar os tempos que vivemos de absolutamente fascinantes, ainda que às vezes assustadores, e sempre muito desafiadores. No entanto, em última instância, é preciso recordar-nos que tudo o que vivemos, com ou sem consciência, com ou sem atitude, foi construído por nós, por cada um de nós, pelas suas escolhas ou não-escolhas, pela sua vontade ou passividade, e, por isso, também nos cabe, agora, a tarefa de assumirmos o caminho percorrido e, perante o que existe, fazer o que precisar de ser feito.

Se há algo que os tempos desafiadores, social ou pessoalmente, nos trazem, é um agitar de águas, um cair de máscaras e de véus, uma revelação que, de forma alguma, conseguimos travar. Então só nos resta erguer a cabeça, colocar as mãos na massa e assumirmos as rédeas das nossas próprias vidas, até porque é preciso compreendermos e vislumbrarmos uma coisa muito importante. Não temos qualquer controlo sobre o que nos acontece, por muito que tentemos e que nos dediquemos a tal tarefa, mas temos o total e absoluto domínio sobre a nossa atitude e escolhas perante essas mesmas coisas. Quanto mais centrados estamos em nós mesmos, nas nossas próprias vidas, melhor e mais fortemente saberemos actuar, saberemos agir, saberemos posicionarmos e não nos deixaremos levar pelos movimentos irracionais de massas em que as sociedades fast-food facilmente entram.

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