Esta mensagem vem tarde. Vem tarde, porque eu cheguei tarde. O que se passa é que a minha relação com a televisão já vem sendo distante há algum tempo, mas no último ano agudizou-se e chegámos quase à ruptura (cansei-me dela por estar sempre a repetir a mesma coisa, qual papagaio, a toda a hora, esquecendo-se de me falar de coisas importantes, não raras vezes), pelo que andei alheada do que se andava a fazer nos ecrãs, convencida de que a maior parte não valia o meu tempo nem a minha sanidade. Este ano, vinte e um, voltou a seduzir-me, e apanhou-me com um programa que já vai avançado, mas que se pode recuperar nessas alternativas on demand (valha-nos isso) e que vale bem o meu tempo e contribui bem para a minha sanidade. Um programa que é um aconchego à nossa alma, sobretudo se forem almas açorianas. Devem já ter ouvido falar do Mal-Amanhados – Os Novos Corsários das Ilhas, uma série conduzida pelos nativos Luís Filipe Borges e Nuno Costa Santos, sobre esse paraíso com nome de pássaro que se cravou no meio do Atlântico. Uma série sobre os Açores. Mais perto da poesia do que de programa de televisão.
Só estive uma vez nos Açores, por um curto período de uma semana, repartido entre as ilhas do Pico e do Faial e trouxe comigo a vontade de voltar desde o dia em que de lá saí. A experiência foi curta, mas as memórias gravaram-se em pedra.
Lembro-me de uma noite procurarmos um local para jantar, ver o pouco que havia fechado e, por caminhos que não se poderão chamar estradas, lá encontrámos um edifício meio casa, meio restaurante, com uma mortiça luz arroxeada a fazer as vezes de um farol em fim de vida e, sem qualquer convicção e com alguma fome, lá fomos bater à porta, com o intuito de pedir recomendações para jantar àquela hora, que não era tardia, mas, por não estarmos em ‘época alta’ e por ser dia de semana, parecia já impossível.
– Aqui – foi a resposta. “Aqui?”, mas está tudo apagado, pensei.
Logo uma família ganhou vida e se desdobrou por detrás do balcão, enorme para tão diminuta clientela, as luzes acenderam-se para pôr à vista uma sala ampla, demasiado ampla, naquelas noites e, com a maior naturalidade, repetindo o que parecia fazerem sempre naquelas circunstâncias (quem não estava habituado éramos nós), serviram-nos. Não me ficou gravado o prato, nem o nome do restaurante, que nem recordo de ter visto no meio daquela penumbra, mas não me esqueço do episódio de acolhimento. Ali ansiava-se por aproveitar qualquer oportunidade que, em determinadas alturas e há uns bons anos atrás, era escassa. A Vida havia, à custa de lições duras e antigas, ensinado a aproveitar aquilo que a Natureza dá e esse ensinamento parecia replicar-se nos demais fenómenos.
Recordo-me de um café bem moderno nas Lages do Pico, cuja dona, uma senhora bonita e jovial, fez a sua apresentação assim que nos recebeu:
– Sou da Terceira, vim para cá, mas não perco as festas da minha ilha. Sou festeira. A Terceira é a ilha das Festas, podem perguntar a qualquer um. Gostamos de festa e aquelas festas são as melhores de todas as ilhas.
Os Corsários das Ilhas aludem a este fenómeno bairrista que alimenta disputas e competições internas, como se as ilhas fossem irmãos, que guerreiam em casa, mas que se defendem mutuamente quando acossados pelo exterior.
Lembro-me do inhame, da morcela (o descanso de saber que o controlo de peso só se aplica à bagagem e não aos passageiros da Sata…). A morcela… comi várias vezes em vários sítios e aqui confesso que progrediu de entrada a prato principal, uma ou outra vez… A carne. Não visto a camisola carnívora, mas comer carne ali é comer carne ‘verdadeira’. Percebe-se isso no prato e fora dele, ao circular ombro a ombro com as vacas que se passeiam tranquilas e donas da terra que é delas, aparentemente felizes, criadas no que, para as suas primas continentais, seria um SPA, com vista de mar. Lembro-me vagamente de um pastor confessar a sua sorte:
– Não preciso de lhes fazer nada, não dão trabalho nenhum; é soltá-las cedo no pasto e a natureza trata de fazer o resto.
Lembro-me das vinhas saídas de uma condição geográfica singular, contrariando o esperado, trazendo a promessa de um verdelho que por ali se bebe, num ritmo que podemos demorar a abraçar. Lembro-me de como tudo pode ser de outro peso, de outro tempo. O homem pode menos, a Natureza pode mais.
Lembro-me, claro, do Pico. Penso no Pico e tenho a sensação de fazer uma vénia interior à grande montanha que, como um Deus, tudo sabe, tudo vê. Não há sítio onde se possa ir na ilha-montanha onde a sua presença não se faça sentir, somente aliviada por nuvens passageiras que podem iludir a sua omnipresença, aos nossos olhos.
Lembro-me da adivinhação precoce do sentimento claustrofóbico de me sentir cercada por mar e mar e mar. Percebi que pode ser asfixiante, podemos precisar de fugir daquele éden, na exacta medida em que o que faz do arquipélago paraíso pode fazer dele pesadelo, assim os nossos olhos vejam, ou o nosso peito ordene. Questiono-me se a insularidade pode ser verdadeiramente sentida antes de se experienciar a urgência de sair.
Lembro-me de cumprir a travessia que separa o Faial do Pico, num barco que se faz ao mar quando há condições para isso, e até uma certa hora. Se não me engano, a última travessia em horário de Inverno era às seis da tarde e, a partir dessa hora, salvo situações de urgência, ficamos ‘fechados’ na ilha. Esse barco tinha à entrada uma pequena cabine transformada em enfermaria, pois que o Pico, apesar da sua dimensão, não tem Hospital, governa-se com os centros de saúde dos seus três municípios, e aquela gente pode ter de embarcar numa ambulância que se faz a uma estrada feita de águas atlânticas. Há razões, alheias ao humano e adstritas ao político, que conduzem as vidas açorianas em condições peculiares – pensemos em alguns jovens que, para ir para a escola, até há pouco tempo, tinham de mudar de ilha, como se a maioridade viesse em tempo de criança.
Viver nos Açores também é lidar com ausência e privação. É ficar, sabendo que pode faltar muita coisa, desde infraestruturas às ditas ‘oportunidades’, e normalizar a história das famílias que se desmembram para que cada um encontre o seu lugar, ou noutra ilha ou num continente, para estudar, para trabalhar, para se apaixonar.
Parece-me que é deste ser agreste que nasce a alma do açoriano. A natureza pode ser agressiva e ainda assim, lá ficam. Podem ver-se privados de muita coisa e ficam, dispostos a lidar com o que vier. Há muita coragem em partir. Pode haver muita coragem em ficar.
Essencialmente, a mensagem que o programa Mal-Amanhados ecoa é que notáveis açorianos estão dispostos a pagar o preço para se manterem no paraíso, abdicando de algum conforto pessoal em prol da preservação das ilhas. Lembro-me de um ‘estalajadeiro’ no programa sobre a ilha de São Miguel, creio, que dizia que os Açores são para viver de verdade: há que fugir da fotografia instantânea, há que fugir dos circuitos maximizados, onde se encaixam todos os pontos turísticos num pacote de cinco ou seis dias. Há que viver os Açores com tempo e, para isso, será recomendável reduzir o número de atracções na agenda e aumentar o tempo em cada uma delas. Menos é muito mais. Lembro-me de algumas lições de vida dadas por uma senhora que muitos de nós gostaríamos de conhecer, Gabriela Silva.
Lembro-me de um episódio, nas Flores, em que todos param a olhar uma parede feita de um verde protuberante e encenam o que deve ser ali a realidade: sentam-se apresentadores, um, outro, convidado, equipa técnica e ali ficam, em silêncio. Contemplação.
Vejam este programa de açorianos, com açorianos, nativos e convertidos, uma banda sonora linda de um açoriano a embalar-nos e a poesia sempre presente de Raul Brandão. Enquanto não vão.