Um Comboio chamado Esperança

A família é o nosso porto seguro. Pelo menos, deveria ser. O lugar de amor incondicional e aceitação com todos os defeitos e virtudes. Contudo, a realidade está muito longe das aparências. Para alguns, a família não é refúgio, mas fonte de rejeição e de dor. Para outros, o desejo é afastar-se dos parentes, sonhando com a independência. Um sentimento sufocante que conduz, na maioria das vezes, a comportamentos precipitados.

Vieram um dia num comboio chamado esperança. Alguns. Outros saíram de casa, porque os pais não os compreendiam […]. Mas todos eles sonhavam com uma coisa chamada “independência”, assim foi dito por Maria Judite de Carvalho em “Aldeias de Gente Só”.

Maria Judite de Carvalho, in Obras Completas V (2019)

A temática da independência e da rejeição familiar chegou num «comboio chamado esperança», onde a autora referencia os que procuram algo melhor, um novo futuro. A metáfora representa o meio de transporte para uma nova vida, movido pela aspiração de mudança e de progresso. Judite de Carvalho distingue, assim, dois tipos de pessoas: os que embarcam na caminhada motivados pela expetativa e os que são obrigados a sair de casa devido à falta de compreensão dos pais, a verdadeira força motriz de tão corajosa emancipação.

Sejam quais forem as razões para a partida, o desejo é comum: a independência. A autonomia e a liberdade são objetivos universais e essenciais para o crescimento pessoal. Em prol dos projetos e ambições, tudo se move e orienta em torno desses objetivos. A intenção vislumbra-se e as lutas travam-se para alcançar grandes conquistas. No entanto, quando a vida é vazia de intentos e desagradavelmente incompatível com a realidade atual, o caminho percorrido pode ser duro e frustrante. As pessoas procuram novos horizontes, mas carregam a incompreensão e a desaprovação familiar numa caminhada dolorosa. Maria Judite de Carvalho, através da sua escrita, toca em questões profundas de rejeição familiar, mas também de esperança, cujas motivações humanas e desafios enfrentados procuram saciar o desejo fervoroso de liberdade, ou seja, um lugar livre, onde se possa ser compreendido, uma vez que a base principal falha.

Cresce-se a acreditar que a família é a base, o alicerce que sustenta. No entanto, essa base pode ser abalada quando o sentimento é de abandono. Imaginemos uma criança que, desde cedo, se sente deslocada no seu lar. Não por falta de amor, mas porque esse sentimento vem abraçado a tantas circunstâncias difíceis de assimilar. Desde logo, que se identifica a dor da rejeição. Carregam-se cicatrizes invisíveis, marcas profundas de uma batalha silenciosa travada entre as quatro paredes, naquele que deveria ser o lar perfeito. A reprovação familiar é uma ferida que sangra continuamente, uma dor que ecoa nos momentos inesperados e que marca como um ferro em brasa. Desistir da família pode parecer um passo extremo, um ato irrefletido. Mas, para muitos, é uma necessidade premente de sobrevivência emocional.

Quando os laços familiares se rompem, enfrenta-se uma crise de identidade.

É natural, pois aprendemos que a família define quem somos, que os nossos pais e irmãos são as extensões de nós mesmos. Então, surge a pergunta inevitável: o que somos, de facto, sem esses laços?

A resposta não é simples. Sem a família, vimo-nos forçados a construir uma nova identidade, muitas vezes a partir de ruínas emocionais. Encontramos bases diferentes em amigos que acabam por se tornar o nosso único apoio. Renascemos com resiliência e independência.

E como somos conduzidos à quebra de laços tão importantes?

Muitas vezes, é uma questão de autodefesa. Num ambiente familiar tóxico, o rompimento é a forma mais rápida de proteger a saúde mental e emocional. Outros motivos podem incluir divergências irreconciliáveis de valores, o abuso emocional ou físico, ou, simplesmente, a necessidade de viver uma vida autêntica, livre das expetativas familiares.

Quebrar laços não é uma decisão precipitada. É um ato de coragem, de autoafirmação, à procura de tranquilidade e entendimento. Embora a sociedade muitas vezes julgue estes comportamentos, é essencial lembrar que a verdadeira família é aquela que nos ama e aceita pelo que somos, e não pelo que espera que sejamos. Encontrar ou construir outra, mesmo fora dos laços de sangue, é um direito fundamental de cada indivíduo.

Assim, homenageamos todos os que, por necessidade, escolheram um caminho diferente, muitas vezes o mais difícil. Longe da família biológica, procuram uma vida plena e autêntica, buscando alcançar paz e amor ao lado daqueles que escolheram para construir um caminho juntos.

Nota: Este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico.

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Comments 12
  1. Infelizmente, a realidade do abandono e/ou da rejeiçao mora mais perto de nós do que gostaríamos.
    Uma crónica que não nos deixa indiferentes. Parabéns!

  2. Uma realidade cada vez mais premente, num mundo de aparências e ilusões criado pelas luzes frenéticas das redes sociais. Óptima reflexão.

  3. Artigo bem construído e muito pertinente para a época em que vivemos. Recordo-me de quando era miúda e tinha ânsias de sair de casa, voltar é um grande não. Teria de acontecer algo mesmo muito grave, no entanto, amo a minha família e melhor não poderia ter pedido. Há fases da vida mais difíceis que outras.
    Amei o texto!

  4. Artigo bem construído e muito pertinente para a época em que vivemos. Recordo-me de quando era miúda e tinha ânsias de sair de casa, voltar é um grande não. Teria de acontecer algo mesmo muito grave, no entanto, amo a minha família e melhor não poderia ter pedido. Há fases da vida mais difíceis que outras.
    Amei!

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