Inteligências múltiplas e Ensino

“Naquele tempo havia mais disciplina e a escola tentava ensinar aos pobrezitos o máximo possível no menor espaço de tempo. Não havia esta insistência nas competências para a vida ou lá o que chamam a isso que tomou conta do ensino dos nossos dias.” (in Lembro-me de ti, Ysra Sigurdardóttir)

Esta frase, extraída de um policial nórdico, indica bem o que se faz no nosso Ensino pelos dias que correm. Educar crianças e jovens, nas “competências para a vida”, uma ideia que, em Portugal, surgiu em alguns Governos anteriores e se tem vindo a agravar.

Não se devia Educar, mas antes Ensinar. Esta a primeira ideia. E, ensinando, educa-se muito, mas grande parte da educação compete às famílias, às comunidades cívicas e à sociedade em geral, num processo activo e passivo. O Ensino deve, desde o início, mostrar o mundo e a vida que nele existe às crianças e jovens que, crescendo, começam a aprender e têm uma inesgotável curiosidade. O Ensino deve transmitir Conhecimento, Saber e Estratégias para Pensar e para a Organização pessoal dos jovens. Isso não se faz com exames, exames e mais exames. Passa-se Conhecimento, sede de Saber e estratégias mentais nas aulas, durante o ano lectivo e não em exames. Que sempre são importantes, para aferir e para auto-aferição, útil aos próprios alunos e fundamental para outros parâmetros de avaliação, dos docentes também, da qualidade dos programas e, até, dos ambientes educativos. E, claro, havendo um sistema de candidaturas ao ensino superior subsequente, é necessário um processo avaliativo.

Porém, esse processo deve ser limitado ao necessário e não a colocar-se sobre ele o ónus da qualidade da transmissão de conhecimentos e de vontade de saber, o cerne da existência, a justificação em si mesma de se ter um Ensino tutelado pelo Estado, um Ministério e um Ministro. Deve-se privilegiar o Conhecimento e a sua transmissão, em lugar da Avaliação do mesmo. Neste conjunto de peças, cada uma delas devia ter presente que o seu objectivo é servir. Servir as pessoas, jovens e seus progenitores e servir um propósito que é o de fazer melhorar e evoluir uma sociedade que ganha com elementos mais informados, mais cultos e mais capacitados, mas de discernimento, de auto-aperfeiçoamento e não de competências para o mundo do trabalho, uma ilusão com um custo insustentável. Um dia nos daremos conta deste tremendo erro. Nem uma Universidade prepara convenientemente alguém, em alguma parte do Mundo para uma profissão, ou, melhor, para uma função concreta. Só mesmo essa profissão e função se encarregarão disso.

E é neste sentido que ganham importância e actualidade divulgar o que um grupo de psicólogos e neuro-cientistas têm vindo a descobrir, de importante para os jovens e para a sua educação. Esta é uma das teorias mais relevantes sobre a nossa mente, a nossa Inteligência.

Howard Gardner esteve no centro da conceptualização da Teoria das Múltiplas Inteligências. Desconfiando das antigas metodologias avaliativas da Inteligência, a Teoria das Múltiplas Inteligências surgiu como uma nova abordagem sobre o entendimento que temos das nossas capacidades e aptidões intelectuais. A teoria partiu da constatação de que a psicometria baseada em testes de QI, quociente de inteligência, era insuficiente para descrever a variedade de habilidades e aptidões humanas cognitivas. Um exemplo é a constatação de que uma criança que facilmente aprende a multiplicar não é necessariamente mais inteligente do que uma outra que tenha aptidões mais fortes noutro tipo de inteligência. Essa criança que leva mais tempo a dominar uma tabuada pode aprender melhor a efectuar operações matemáticas simples, como a multiplicação, através de uma abordagem diferente. Ou pode, até, dominar a multiplicação a um nível mais profundo, o que pode explicar o raciocínio mais lento (na linha de pensamento de Daniel Kahneman, apresentada em Pensar Depressa e Devagar, do Sistema 1 e Sistema 2 da nossa mente). Ou, ainda, a criança pode ter outras capacidades bem mais desenvolvidas, fora do campo da matemática. O que não faz dela menos inteligente, e até pode fazer mais.

Esta investigação sobre as Inteligência Múltiplas, relevante para todos, mas particularmente para os jovens em idade escolar, iniciada nos anos 80, identificou na altura as seguintes “inteligências”, ou distintas aptidões intelectuais:

Lógico-matemática

A capacidade de confrontar e avaliar objectos e abstrações, discernindo as suas relações e princípios subjacentes, raciocinando, calculando, pensando conceptualmente. Experimentar, fazer puzzles. Habilidade para raciocínio dedutivo e para solucionar problemas matemáticos. Uma aptidão muito própria de investigadores e cientistas. Nas Escolas, os jovens podem ser ensinados através de jogos lógicos, investigações, mistérios. Necessitam de aprender e de formar conceitos antes de lidar com detalhes.

Linguística

Caracteriza-se por um domínio de idiomas e palavras, lidas, escritas e faladas, pelo uso efectivo (com sentido) das palavras. Os estudantes com esta vertente potenciada desenvolveram capacidades auditivas particulares e pensam frequentemente em palavras. Gostam de ler, fazer jogos de palavras, fazer poesia, ou contar histórias. Podem ser ensinados encorajando-os a dizer e visualizar palavras, ler livros em grupo. As ferramentas adequadas incluem computadores, jogos, multimédia, livros e leitura.

Musical

Habilidade para compor e executar padrões musicais, executando peças ou extratos de ouvido, mas também escutando-os e discernindo-os. Podem possuir ouvido absoluto. Pode estar associada a outras inteligências, como a linguística, espacial ou corporal-cinestésica. Demonstram uma sensibilidade para os sons e ritmos distintos de outras pessoas. Adoram música, estudam melhor com ela, mas são também sensíveis a sons ambientais, pela positiva ou pela negativa. Podem ser ensinados pela transformação de textos em letras musicais, pela linguagem rítmica, tendem a apreciar mais poesia e a entender os seus ritmos do que outro tipo de textos. As ferramentas incluem, obviamente, os diversos instrumentos musicais, música e poesia.

Espacial

Expressa-se pela capacidade de compreender o mundo visual com precisão, permitindo transformar, modificar percepções e recriar experiências visuais até mesmo sem estímulos físicos. Entender o espaço, ter capacidade de orientação num espaço com poucas ou nenhuma referência espacial. Devem aprender através de imagens, verbais e físicas, gostam de desenhar, interpretar mapas. As ferramentas podem ser modelos, gráficos, cartas, fotografias, desenhos, modelos 3-D, vídeos, televisão, vídeo-conferências, multimédia, textos ilustrados.

Corporal-cinestésica

Traduz-se na maior capacidade de controlar e orquestrar movimentos do corpo. Possuir um domínio especial e partícula do seu corpo.

Usam o corpo com eficiência, como um bailarino, ou como um artista plástico, um cozinheiro, um desportista, ou um cirurgião. Gostam de movimentos, artes manuais, construir modelos, gostam do toque, têm o sentido do tacto muito desenvolvido. Comunicam muito bem pela linguagem corporal e podem ser ensinados através de actividade física, aprender “com as mãos” (“meter as mãos na massa”), actuação em palco, desempenho de papéis numa peça teatral.

Intrapessoal

Expressa na capacidade de se conhecer, é a mais rara inteligência sob domínio do ser humano, pois está ligada à capacidade de neutralização dos vícios, entendimento de crenças, limites, preocupações, estilo de vida profissional, autocontrolo e domínio dos causadores de stress, postula a atitude de independência face a grupos e organizações, forte sentido e necessidade de liberdade individual e intelectual muito próprios, entre outros diversos comandos de vida que permitem identificar hábitos inconscientes e transformá-los em atitudes conscientes. Estes jovens estudantes tendem a isolar-se um pouco dos demais, estando em sintonia com os seus próprios sentimentos e com a sua vida interior. Possuem uma sabedoria, intuição e motivação, assim como uma forte vontade próprias, confiança, segurança e opiniões muito convictas. Podem ser ensinadas pelo estudo individual e pela instrospecção. As ferramentas incluem livros, materiais criativos, diários. São os estudantes mais independentes.

Interpessoal

Expressa pela habilidade de entender as intenções, motivações e desejos dos outros. Peritos em empatia. Saber interactuar Saber inserir-se em comunidades, em sociedade, e desenvolver actividades em ambiente social. Políticos, comunicadores, jornalistas, relações públicas, gestores, comerciais de sucesso, religiosos. Os estudantes podem aprender por interacção em actividades de grupo, pelo teatro, grupos musicais, seminários e desportos colectivos. Sabem organizar-se e aprendem melhor em grupo, desenvolvendo trabalhos e projectos nesse contexto. Têm muitos amigos e inserem-se com facilidade em grupos muitos distintos, comunicando constantemente, pessoal ou virtualmente. As ferramentas incluem o telefone, áudio e vídeo-conferências, actividades de teatro, comunicação pela Internet.

Naturalista

Traduz-se na sensibilidade para organizar os objectos, fenómenos e padrões da natureza, como reconhecer e classificar plantas, animais, minerais… Ecologistas, biólogos, geólogos.

Existencial

Investigada no terreno ainda do “possível”, carece de maiores evidências. Abrange a capacidade de reflectir e ponderar sobre questões fundamentais da existência. Seria característica de líderes espirituais e de filósofos.

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Howard Gardner afirma que estas diferenças em (entre) todos nós desafia os sistemas educacionais que assumem que toda a gente, todos os jovens, podem aprender as mesmas matérias da mesma forma, pelo mesmo método, e serem avaliados pelos mesmos parâmetros e metodologia. Gardner defende que um sistema educacional contrastante conduz a um sucesso muito superior. Os estudantes aprendem de forma distinta, perfeitamente identificável.

Pode parecer impossível ensinar para receptores com tão distintas aptidões intelectuais, ou tipo de inteligência mais desenvolvido do que outro. Mas se um estudo cuidadoso for efectuado, muitas das ferramentas recomendadas são comuns à maioria dos tipos aqui apresentados. E, claro, a diferença para os métodos tradicionais, reside na capacidade de entender estas necessidades e de as adoptar, dando preferência e ênfase a algumas ferramentas e metodologias para tipos mais particulares de inteligência, como a representação de papéis em pequenas peças de teatro (uma boa ferramenta para os jovens que têm o tipo de inteligência corporal-cinestésica e interpessoal, mais desenvolvidas por exemplo). O desenvolvimento de actividades de pesquisa, de pequena investigação, de jogos de mistério e descoberta para os que têm a inteligência lógico-matemática, ou interpessoal mais desenvolvida. A elaboração de textos ou jogos de palavras para os que apresentam mais aptidão linguística…

…mas o ponto é que um dia esta tendência suicida na nossa Educação, na Escola, que foi nossa, que é dos nossos filhos e que os devia preparar para a vida, fornecendo-lhes estratégias para pensar, para amarem o Conhecimento, a Cultura a Ciência… o Saber e, mais do que isso, a procura do Saber, como tantos pedagogos e investigadores e filósofos, como Agostinho da Silva, Ken Robisson, Horward Gardner, Daniel Kahneman, Douglas Hofstadter, Daniel Dennet, Jacques Barzun, Jared Diamond… há anos nos alertam para esta Revolução no Ensino. Há anos fiz parte de um projecto educativo inovador em Portugal, no ensino da música, um grupo de pais e professores saídos da Escola de Música da Metropolitana de Lisboa, fundaram uma nova escola (um desses pais é o actual Governador do Banco de Portugal). Com base no método de Shinichi Suzuki, um pedagogo japonês que revolucionou o ensino musical e é alvo de um capítulo em Frames of Mind, uma das obras centrais da Teoria das Múltiplas Inteligências. A diferença na evolução da aprendizagem da música é tremenda. Esse projecto existe e é um orgulho português e dos seus professores fundadores: Academia de Música de Lisboa. Esse projecto estava fora dos parâmetros definidos pelo Ministério da Educação, para poder ser reconhecido pelo mesmo. É esta mentalidade obtusa, com mais de 70 anos, que nos agarra ainda ao atraso secular português, pelo qual somos, aliás bem conhecidos. Incapazes de repensar um Ensino novo, com base nas imensas novidades que hoje, a cada mês, as neuro-ciências nos trazem e permitem repensar a nossa Mente e a nossa Espécie.

Esta Teoria é uma das mais válidas, mas continuamente ignorada pelos subsequentes Ministros e Ministérios da Educação. Institucionalizou-se Camões e Gil Vicente, monstros sagrados da nossa Literatura, que afastam por vezes definitivamente, os jovens de leituras presentes e futuras. Literatura com quinhentos anos, para quem já nem vontade de ler tinha… boa sorte, apetece dizer. Agora, a moda é a Matemática, esmagadora, açambarcadora dos horários dos nossos jovens, uma suposta ciência maior do que as outras, supostamente mais importante. Assim se ignorando, desprezando e ofendendo, mesmo, as capacidades próprias de cada um. Há poucos anos foi a tentativa de eliminar Filosofia do Ensino, porque tudo devia dar ao mesmo: à profissão, de médico, de Engenheiro e pouco mais. Filosofia que devia ser ensinada desde os dez anos. Música que devia ensinar música. E dança? E Pintura e desenho a sério? E desporto efectivamente de valor.

Cada pessoa possui todas as Inteligências apresentadas, mas tem alguma ou algumas mais desenvolvidas. Nos jovens, o fundamental é entender qual, ou quais as que mais os caracterizam e polarizam, aproveitando, assim, as suas capacidades mais salientes. Hoje, nos Estados Unidos da America há projectos educativos a serem desenvolvidos, como os que se centram nesta Teoria, ou no Project Zero, ou no Common Core. Na Finlândia, as reformas educativas vão ainda mais longe e recusam liminarmente esta visão arcaica que insistimos em reforçar em Portugal, do ensino baseado na Língua portuguesa, na Matemática e em pouco mais. E em que a tónica não é colocada nestas capacidades múltiplas e ímpares de cada criança ou jovem, nem no desenvolvimento desse amor pelo Conhecimento e Desenvolvimento Cognitivo pessoal. Toda a ênfase do nosso Ensino tem sido reforçada nas avaliações, partindo do princípio que com essa noção de serem avaliados, os jovens de dedicarão a estudar mais. Contudo, a dedicação ao tempo do ensino, e à qualidade do mesmo, em salas que são ainda autênticos espaços de convulsão e indisciplina, não se tem notado. O Ensino, o Saber e o querer Ser melhor, com mais Conhecimento e mais ciente das suas capacidades é, em países com a Finlândia, o que motiva os jovens e o que os afasta da Escola, por cá. Não será com exames e mais exames que chegaremos a mudar tudo isto. Na Finlândia, como nos EUA, projectos como o National Core Curriculum ou Common Core, respectivamente, procuram soluções inovadoras e distintas da estafada tradição educativa que não motiva já os jovens e não os prepara para se descobrirem num mundo que mudou de forma tão evidente e para o qual, decididamente, não estamos a preparar as futuras gerações. O nosso ensino já não agarra os jovens à Escola, nem ao prazer pelo saber e à demanda pelo conhecimento e aperfeiçoamento pessoal. As neuro-ciências estão a dar um contributo novo e decisivo, que tem, por enquanto, sido ignorado em Portugal e em muitos países europeus, mas não no país-referência no Ensino e Educação, a Finlândia.

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