Descobri Maria Judite de Carvalho no Goodreads e, embora assinalando Tanta Gente, Mariana, a primeira obra da autora, publicada em 1958, como um livro “a ler”, ela ficou junto a tantos outros que vão engrossando a lista de “To Dos Literários” e que me recordam a toda a hora a insuficiência da vida para tanta exploração.
Até ao dia em que os contos desta obra tão singular, maravilhosa e reveladora chamou por mim numa prateleira da Gatafunho, livraria no centro histórico de Oeiras onde comprava uma prenda de aniversário (um livro, obviamente). Não hesitei, não podendo assim classificar como uma escolha a vontade avassaladora que me levou a pegar no livro e a juntar ao outro. Este, sem ser para embrulhar, apesar da surpresa e da expectativa que eu sentia rivalizarem com a que me toma, de cada vez que desembrulho um presente em forma de livro.
Todos os contos são um primor, unidos pela tristeza e solidão, os dois estados que viajam por toda a obra, numa escrita ao mesmo tempo poética e concreta. Recordo um conto, creio que o segundo, sobre um homem que, já depois da meia-vida, dizia à mulher que ia ao futebol quando na verdade ia apenas observar os aviões, fazendo disso segredo, fustigando-se pelas oportunidades de carreira recusadas no passado, uma vida permanentemente posta em causa e esse sofrimento contido, vivido em reclusão, onde a visita aos aviões que partiam representava o suspiro semanal de liberdade.
Vida verdadeira já eu não seria capaz de viver, porque lhe perdi o hábito. Para mais essa experiência, a da vida, foi sempre para mim demasiado difícil. Nunca me habituei a ela e isso é estranho porque todas as pessoas a consideram uma coisa simples e natural, a mais natural e mais simples de todas quantas existem. Eu fiz sempre cerimónia e não procedi por isso como devia, como procediam as outras pessoas, mesmo as mais broncas e as mais rudes, com à-vontade.
Por essa altura, ao pesquisar sobre a autora, vi um mini-documentário onde Urbano Tavares Rodrigues, marido de Maria Judite de Carvalho, confessou, já depois da morte da mulher em 1998, que ela ambicionava ser pintora e que lhe entregara o esboço de Tanta Gente, Mariana, aquando de uma deslocação dele a Paris. Leu-os só, no quarto do hotel e concluiu “Acreditava mais no seu talento como pintora do que como escritora, quando ela acima de tudo era uma grande escritora.”. Urbano telefonou de imediato à mulher para lhe dizer que o livro era uma maravilha.
E é, de facto. Sem necessidade de grande perspicácia ou experiência literária para o reconhecer. Basta saber ler.