Atirou a arma para longe.
Corria o mais depressa que as suas pernas conseguiam, embalado pelas memórias do que havia feito.
Uma única munição. Um tiro certeiro num alvo em movimento.
– Não mais me farás frente, irmãozinho adorado! – saiu-lhe agudo o sopro destas palavras entrecortado pela respiração ofegante.
Havia agora um corpo que se afundava lentamente nas águas do rio.
Tudo começara há dois anos com a morte do pai e a subsequente e inevitável leitura do testamento.
A cólera que sentira naquele momento toldara-lhe o discernimento.
Puro despeito, ambição desmedida, a ganância no seu estado mais vil, foram os ingredientes servidos naquela mesa, naquele dia…
A face roburizava-se frequentemente respondendo de pronto ao comando de pensamentos pouco amistosos.
Imagens vermelhas assomavam-lhe muitas vezes à imaginação do que iria fazer.
Um plano!
Arquitetava-o a cada segundo, em cada respiração que fazia descomprimir o seu corpo trémulo perante a antevisão da vingança.
Precisava despir-se da humilhação que sofrera, sentir-se novamente imaculado. Sempre fora conhecido pela postura gentil e pela bondade que habitava o seu coração.
Orgulhava-se.
Porém, agora tudo mudara.
Avolumava ideias que esquematizava em folhas de papel brancas e que, uma após outra, amachucava e atirava para a lareira. Demorava-se a olhar aquele crepitar lento que castigava e transformava em cinza, por antecipação, o seu opositor.
“Como se atrevera a enganá-lo?!”
“Como supusera que lhe levaria a melhor num jogo mundano cujo tabuleiro conhecia melhor que ninguém?!”
Haveria de pagar com a própria vida por tal displicência.
O seu último suspiro haveria de ser a abundante alegria com que daria novo fôlego à sua vida com a fortuna habilmente resgatada.
(…)
Por baixo daqueles óculos escandalosamente caros e de marca havia uns olhos raiados de fúria.
Aquela sexta-feira, dia treze, tinha sido a eleita para a leitura do futuro mandamento.
Horas antes, João, trinta e quatro anos, solteiro por vaidade e advogado por proveito da riqueza dos seus progenitores, tinha vestido o seu melhor fato comprado em pleno desfile de moda.
Queria tudo, o melhor, só para si.
Estava habituado a ter o mundo, o seu e o dos outros, a seus pés, e jamais se contentaria com menos que isso, com menos que a totalidade.
Ao sair do escritório pegou no último biscoito pousado no prato, usualmente destinado aos clientes, e fechou estrondosamente a porta atrás de si.
Irritava-o ter de se deslocar a pé, estreando ferozmente os seus novos sapatos já reservados para uma ocasião convenientemente mais especial.
Arrependia-se amargamente de ter dado folga ao motorista que por incompetência se dizia cansado após vinte e oito dias ininterruptos em viagens de trabalho.
Rodou a maçaneta sem bater e fez um compasso de espera observando quem já tinha chegado.
Não cumprimentou propositadamente ninguém.
Do extenso painel de ar sofrido e rostos imbecilmente lacrimejantes, apenas uma coisa lhe interessava e esta encontrava-se inanimada, tal como o corpo que não tinha tido tempo de velar, repousada em cima da mesa, ao centro.
Percorreu com altivez e desdém o curto espaço que o separava da cadeira para si reservada.
Deu-se início à leitura do tão esperado documento.
Para si, aquela folha de papel representava o verdadeiro amor, aquele que se permitia desfrutar constantemente, para si, o único.
A custo, silenciou o ímpeto indignado com que sentia o desgosto que se lhe cravava no âmago tal como um amor não correspondido.
Sentia a carne viva através do rubor que lhe escorria em gotas pelo rosto impecavelmente hidratado, após a perceção de cada palavra que chegava até si, proferida numa voz projetada para todos e não exclusivamente a si dirigida.
Levantou-se, debilmente consternado, e exigiu a plenos pulmões que aquela insignificante folha de papel fosse destruída e que outra surgisse para revelar toda a verdade: a sua verdade.
Acalmou-se e teatralmente retomou assento com renovada masculinidade naquela cadeira rústica que precisava de adquirir um novo design.
Deu início à leitura do novo testamento, até então inexistente, mas que retirou da pasta de pele.
No final tudo estaria bem desde que fosse seu, somente, absolutamente tudo.