Foi à terceira que entendi O Principezinho, ou que pelo menos desbloqueei a lacuna, algures entre o preconceito e a expectativa, o preconceito de me ter quase forçado a gostar de algo de que todos gostam, e a expectativa perante uma obra tão admirada.
Li-o a primeira vez aos dezasseis e achei ok. Na segunda leitura, oito anos mais tarde, desiludiu-me, e, ainda que não tenha baixado os braços (sem estar certo da razão, embora suspeite), guardei para mais tarde uma terceira investida.
Pelo meio, li outra obra de Exupéry – Voo Nocturno – e fui de imediato transportado para um episódio de um filme da Disney que tinha gravado da TV e que passava no aparelho do Externato onde terminei a infantil e fiz a primária: Olá Amigos! Uma das histórias deste filme, fala de um avião-correio (o avião era o personagem) que voava durante a noite por entre os Andes, para transportar o correio entre lugares (então) isolados da América do Sul. O Voo Nocturno de Exupéry era parecido e diferente, mas a adaptação animada presta-lhe uma bonita homenagem.
Regressei a O Principezinho aos 37 anos, e foi no hall apinhado da Gulbenkian, enquanto aguardava pelo início de uma comunicação ou mesa redonda num festival de comédia, que li de enfiada o livro (ou o que faltava dele). E ali, como que por magia, tudo fez sentido. Ou melhor, tudo não, mas um toque particular do livro, o cativar, e aquilo que representamos para os outros poder ser tanto mais do que o que nós ou outros conseguimos ver. Foi essa magia invisível que encontrei naquela algazarra, esse poder que quase tudo tem de conseguir transcender o concreto para significar mais, numa constatação tão simples e tão bonita da condição humana, ou mais do que isso, da condição de existir.
Das três vezes, li a mesma versão (da Europa-América, marca que é hoje propriedade do meu amigo Alexandre), entretanto oferecida.
Recordo Rui Farinha, professor de Ciências do 10.º ano, a propósito d’essa passagem é tão bonita…, afirmação proferida com um sorriso sonhador sobre o homem que num pequeno planeta acendia o único candeeiro existente à superfície. Só que o planeta era tão pequeno que ele passava a vida a acender e a apagar o candeeiro, pois depressa o astro completava uma volta completa.
Já tinha tido a experiência de redescobrir livros, filmes e pessoas, lugares e iguarias, sensações de infância, projectos abandonados ou sonhos esquecidos. E em cada visita a um lugar conhecido que se faz novo, renascemos, apanhamos um bocadinho desta beleza que é viver, de nos encantarmos com o que antes foi para nós indiferente, desiludiu ou aborreceu. Reler O Principezinho só à terceira fez sentido. Como cortejar uma rapariga, começar a fumar ou provar sushi, há coisas boas para as quais é preciso insistir, pois a primeira impressão pode cair naquele bdiec de indiferença, desilusão ou aborrecimento. Mas depois há mais vida e ela teima em mostrar-nos que não acaba, que não se esgota num fracasso e que este é mais uma oportunidade para redescobrir novos caminhos. O Principezinho representa hoje para mim, depois da terceira leitura, qualquer coisa de cativante.
A Rosa de que ele cuidava com tanto carinho por ser para si muito mais do que uma Rosa, assim começou a ser este texto para mim. Uma coisa tão simples – nós sermos nós e tudo o mais que evocamos a quem connosco partilha este tempo – e ainda assim, tão carente de ser lembrada… mostra bem de como nos esquecemos do essencial a toda a hora.
Antoine de Saint-Exupéry faleceu na II Guerra sem ter testemunhado o enorme sucesso da sua obra. Deixam-me uma pena enorme estas redescobertas fora de prazo, estas pessoas que nunca puderam, enquanto cá andaram, beber um pouco do prazer do reconhecimento, da importância que eles, o que escreveram, disseram ou fizeram, tiveram para os outros, para o mundo inteiro! Um livro capaz de rivalizar com a Bíblia ou o Corão na lista das obras mais populares é demasiado grandioso.
Pensei em não poetizar o fecho deste texto, tentando fugir a este universo simbólico, mas não consegui aterrar de volta no concreto de nada mais sermos do que aquilo que vemos. Assim, fecho este pequeno ensaio reconhecendo ter o piloto e autor francês atingido a imortalidade por nos ter cativado a todos, e ao evocá-lo, não é o homem, piloto e escritor quem renasce dentro de nós, mas sim esse ser tão emblemático da fragilidade da condição humana que vemos: O Principezinho. E no fundo, cativar alguém é isso: transformarmo-nos em muito mais do que éramos à partida, sem deixarmos de ser tudo isso.