Quando achava seu mundo pelo podre em desmorono, espreitava o nosso. Lufada de ar fresco para o seu, quase sempre. “Afinal há lugares piores”, notava. Espreitou-o ao dia de hoje.
Perdeu o controlo, quebrou as regras. Não mais conseguiu ver de longe. Desceu de uma nave, armada com a razão, a arte e a ciência. Tintas numa mão, papilas gustativas pela sabedoria despertas e humanização na outra. Todos a olhavam. Por Deus, desceu de uma nave! Multidão em silêncio. A nave cuspiu um cavalete com papéis de cinco metros, em branco. “Crenças pessoais”, escreveu com cores, entre bailados e movimentos peculiares. Escreveu-o e rasgou-o em seguida, com desapreço. Silêncio absoluto. Murros, figurados, no estômago de todos os presentes. Olhou a plateia do mundo, olhou a nave e dançou ao som do silêncio. Baloiçou todo o corpo. Parou. Fez sinal para que todos assim permanecessem, tal qual estavam.
– Shhhhh – com o indicador em frente aos lábios. Em seguida, com os dedos em forma de pinça, polegar e indicador, abriu ambos os olhos. A mensagem era óbvia: “arregalem-nos, mais do que a boca, para ver que preste.”
Desenhou uma forma humana. Rasgou-a, depois, em três e deu-lhes nome.
1) Sexo biológico. Macho ou fêmea, descrito na certidão de nascença, já se sabe. Não esquecendo situações de perturbações cromossomáticas.
2) Género. Fez uma pausa, olhou-os a todos e acrescentou a nota: a sensação subjetiva de ser homem ou mulher. Pode não corresponder ao sexo biológico.
3) Orientação sexual. Abanou a cabeça. Melhor que acrescentasse aqui a bendita nota: onde se encontra a nossa atração erótica. Por homens, por mulheres, por homens e mulheres (bissexuais) ou, noutros casos, assexuais (sem atração). E mais umas notas se podiam aqui deixar para ser isto completo.
Dobrou as três metades como se de rifas se tratassem e misturou-as. Foi tirando várias combinações. Era clara a evidência de que estes três elementos poderiam ser combinados de qualquer forma. Foram-se construindo possibilidades: homem-homem-homem; homem-mulher-mulher e por aí fora. O nevoeiro que envolvia a transexualidade foi-se dissipando nas mentes do auditório. Afinal, não é assim tão confuso que o vizinho do terceiro esquerdo “ande nisto para ser mulher, mas continue a arregalar o olho às moças”, a orientação sexual continua a ser a mesma. E aquela prima que vem todos os anos do estrangeiro, do prédio da frente? Sabe-se agora que, talvez, tenha a combinação mulher-homem-mulher. Primeiro foi tida por quem cá andava como homossexual, por ser uma mulher gostando de outras. Depois da transformação, como heterossexual. O que era uma confusão, clarificou-se. Afinal, a “alteração” foi no segundo elemento. Já não há necessidade de invocar a palavra “coisa” para se referirem ao primo. Isto dos desenhos ajuda em muito, abençoada arte.
Depois das combinações, que exibiram um mundo longe do preto e branco, escreveu linhas infinitas de palavras a uma velocidade estonteante. Cinco metros escritos, dez metros, quinze metros. Nada se percebia a bem dizer, palavras soltas. Rasgou-as a todas, gritando em simultâneo. Na última folha, a letra percetível, deixou ficar a passagem que o resto engole:
“Dentro de cada alínea cabe uma vasta bibliografia em constante mutação. Cabem centenas de notas e esclarecimentos. De estudos e opiniões. A verdade, é que mais do que procurar a terminologia adequada, a verdadeira evolução passa por saber que existirá sempre quem não corresponda a nenhuma combinação e que as possibilidades são infinitas. Os termos são secundários quando recusamos a intolerância com o que se apresenta inofensivo. Que em primeiro plano esteja a liberdade.”
Entrou na nave e volveu a outros mundos.
Que o cavalete aqui permaneça para nos recordar da tolerância e do amor.