Ontem deixei ir. Deixei ir um pedaço forte e grande da minha história, uma identificação total minha.
Não tinha outra hipótese. Todos os caminhos se me apresentaram assim. Ao olhar para trás apercebo-me que todos eles foram como rios, percorrendo, cruzando e culminando no momento que tinha de o ser.
Com o desfecho ficou o vazio. O silêncio de uma identidade que agora se requer nova e construída de raiz. Uma percepção de que a identidade é muito mais do que parece ser e que a ligamos a uma história, a coisas materiais, a uma terra, a momentos, à nossa infância.
Ficou essa noção breve de que muitas vezes somos de muitos sítios e não pertencemos a nenhum, que mantemos os pés no chão mas que esse chão não nos identifica. Somos nós. Nós é que nos reconhecemos e nos ligamos ao chão que pisamos.
Ao deixar ir, também fiquei mais leve. Estranhamente leve. Respirei com alívio o desfecho porque tive a nítida percepção que nele se encerraram muitos capítulos e não só os meus. Na nossa permissão de deixarmos ir permitimos que os outros também o façam, se percebam, se entendam no mesmo chão que com eles percorremos.
Talvez com estas palavras reflicta sobre a minha própria identidade até ao dia de ontem. Entenda que a minha noção de ser esteve ligado às minhas próprias recordações, que a minha definição do eu estava intrinsecamente ligada a um sentido de pertença, a um lugar, a momentos que embelezei muitas vezes para que tudo tivesse um sentido.
Esqueci-me que os momentos menos belos estavam lá para me ajudarem a seguir e perceber que no escuro temos de acender a luz, que seguir com leveza só é possível quando pousamos os pesos no chão.
Carreguei, até ontem, todos os pesos. Achava que tinha de ser responsável por tudo, por todos e que no meio talvez conseguisse uma brecha para ser responsável por mim mesma. No fundo, se vasculhar bem, esta era a forma de caminhar que tinha lógica, a única justificação de continuar quando tudo não fazia sentido algum.
A própria vida encarregou-se de arrumar e de me desprender. Mostrou-me, frente-a-frente, que libertar a carga é deixar ir. Que deixar ir entristece mas é necessário. Que ficarmos sem saber quem somos é meio caminho andado para o sermos. E que as memórias são sempre nossas, mesmo quando quem amamos já não está por cá.
Ontem deixei ir. Hoje sigo com leveza apesar do corpo ainda estar dorido com a carga, que era muita. Choro e reconstruo-me porque o que foi ontem já não o é hoje e não sei como ser sem o que foi ontem.
Ligo-me agora devagarinho ao chão por onde caminho mas agora com a confiança certeira de que a vida encarrega-se de pôr cada coisa no seu lugar. Quando seguimos com ela, seguiremos com muito mais leveza.
Adorei o seu texto.
Revi-me em cada parágrafo. Obrigada pela patilha.
Sandra, muito grata pelo seu feedback.
Que sigamos e com muita leveza. 🙂
Um beijinho
Carla M.