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Palradores geniais

Falar com uma criança é uma actividade desafiadora. Gosto, sempre gostei, de falar com elas, acercar-me do seu mundo, do seu raciocínio, tantas vezes genial, outras tantas simplista, apercebendo-me da sua forma tão própria de catalogar, sem o saber, o nosso mundo.

Longe da complexidade (ou será complicação?) dos adultos, as crianças pensam de forma muito pura, muito transparente, muito lógica, liberta de condicionalismos sociais ou afectivos.

Contudo, se em tempos se considerava as crianças como adultos em ponto pequeno, antecipando deveres da vida adulta, como trabalharem precocemente, noutros casos são desconsideradas na sua forma de pensar, como se fossem um produto inacabado, sem valor reconhecido, enquanto não forem cronologicamente adultos.

Lembrei-me deste assunto no outro dia. Eu, que sempre fui uma criança questionadora, para quem era importante perceber os conceitos e as vivências, coleccionei uns quantos mal-entendidos, seja porque não me explicaram as coisas ao nível do meu entendimento, ficando-se pelo básico  ou, a contrario,  porque confiaram numa elevação abstracta que ainda não tinha, e a que portanto não ascendi.

Isto com exemplos é bem mais fácil de explicar.

Quando perguntei de onde vinham os bebés, algures pelos 3 ou 4 anos, disseram-me que era do amor dos pais. Que quando os pais se amavam, os bebés nasciam. Não tendo consciência da imperiosidade física e da idade capaz para fisiologicamente cumprir tal fim, achei que estava grávida, afinal eu e o Paulo gostávamos um do outro. Teria, provavelmente, sido a mãe mais jovem da história e o pai também o seria, nos seus 5 anos.

Fui educada na religião católica, na Bíblia, cheia de simbolismos e sem a objectividade linear do pensamento infantil. Mais do que o questionar de onde viria a descendência, se Adão e Eva tiveram 2 rapazes, lembro-me de questionar o termo “tocar numa mulher”, que se referia obviamente, soube-o depois, ao facto de se relacionar sexualmente. No contexto, referia-se os “dias impuros da menstruação” e, no meu entendimento, era como se o homem tivesse nojo de abraçar a sua mulher, ou mesmo dar-lhe a mão.

Espanha era para mim uma feira onde as pessoas iam às compras, dando-se inclusivamente ao trabalho de trocarem moedas, que na altura eram ainda as pesetas.

Achava também que os bancos tinham sacos com o nome do depositante, que se guardariam no cofre, a fazer jus aos papeis que se preenchiam.

Tudo isto são coisas que, não sendo graves, são geradas pela falta de informação. Ou por omissão, baseadas na vergonha da sexualidade, ou pela presunção de que não precisava saber mais do que isso.

Não, na minha geração, mas em anteriores, havia meninas que choravam ao ser surpreendidas com a menstruação, porque iriam morrer, porque a hemorragia estava associada nas suas mentes a doença e padecimento.

No meu caso, o que mais me marcou e machucou, foi o facto de a minha avó, mãe de criação, ter falecido de cancro do pâncreas, rápido e invasivo, sem que me tenham sido dado elementos para me organizar mentalmente. Aos 16 anos, o nosso mundo não são, não deverão ser as doenças. Nesse tempo, início dos anos 90, ainda se fugia ao termo, classificando-o como “ a doença do século”, embora às vezes fosse confuso se se referia ao cancro ou à sida, muitas vezes sendo esclarecida apenas pelo contexto. Portanto, dizerem-me coisas vagas como “ tiraram 2 litros de líquido” e “ vai-te preparando”, em nada em ajudou, porque eu, com 16 anos, não tinha o conhecimento sintomático que tenho hoje, e parece-me grosseiramente agressivo que não se explique significativamente a realidade, em grau perceptível. Mais do que isso, revela que alguém se escudou na minha inteligência  (que tinha) e experiência de vida ( que ainda não tinha), para efectuar deduções e conclusões, protegendo-se da dureza da conversa.

São erros que procuro não fazer. Farei outros, com certeza, não tenho dúvidas. O meu filho é igualmente questionador, o que me dá grandes lutas. Contudo, faço-o com  agrado, porque me permite elucidá-lo e ajudá-lo a construir o se plano mental, na medida das suas perguntas, sem mentiras, mas sobretudo sabendo que por isso  não será presa fácil para manipuladores mal intencionados.

Quando tinha 4 anos, revelou uma grande preocupação com a morte, pedindo-me a mim e ao pai que prometêssemos que não morreríamos. Aflitos, consultámos um psicólogo, que rapidamente nos descansou, dizendo que ele não manifestava qualquer problema, não se isolava, não tinha perspectivas de morte, era apenas a sua reacção à novidade que era para ele, na altura, a mortalidade. O psicólogo disse que muito bom era o facto de ele falar sobre o tema, porque há miúdos que sofrem horrores mas não exteriorizam, e portanto não podem ser ajudados, porque nem sequer nos apercebemos da dor sentida.

Num outro caso, a criança deixou de comer, para que, dizia ela, a avó não morresse. Dedução ilógica para um adulto, mas absolutamente correcta, se conjugarmos o pensamento infantil, que agrega comentários díspares num mesmo contexto: 1. se eu comer, cresço 2. quando for grande a avó é velhinha 3. se como, cresço, a avó envelhece e morre. Logo, se eu comer, ela morre. Não menosprezemos o pensamento infantil…

Não sou psicóloga, mas do contacto que tenho tido com o assunto, a mente de uma criança, e quanto mais inteligente mais isso ocorre, é como as coscuvilheiras da vida alheia que, não tendo acesso aos dados na sua plenitude, se dispoêm a discorrer as peças em falta, de forma a conseguirem obter algum significado. No caso das crianças,  coscuvilhice mas em bom.

A criança portuguesa é excessivamente viva, inteligente e imaginativa. Em geral, nós outros, os Portugueses, só começamos a ser idiotas – quando chegamos à idade da razão. Em pequenos temos todos uma pontinha de génio.

– Eça de Queirós

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