A pandemia da COVID-19, provocada pelo vírus SARS-COV-2, tem confrontado a humanidade com vários dilemas. Perante este novo vírus, somos todos potenciais vítimas, independentemente do nosso género, etnia ou credo. Neste sentido, podemos afirmar que a COVID-19 é uma ameaça à humanidade. Contudo, o que significa a humanidade? Será a humanidade um simples somatório de todos os humanos? Ou tratar-se-á de um sentimento de união entre indivíduos que nos orienta para a preservação da nossa espécie, para a criação de um sentido comunitário global, de pertença e de interajuda? E se a resposta a esta última questão for afirmativa, o que é feito da nossa humanidade nestes tempos conturbados?
Em A General Theory of Love, Lewis, Amini e Lannon sugerem que, ao longo do processo evolutivo, os mamíferos desenvolveram uma estrutura cerebral, designada de “cérebro límbico”, que os terá dotado da capacidade de criar vínculos emocionais. Segundo estes autores, os mamíferos têm uma faculdade especialmente bem desenvolvida que os distingue das demais classes de animais: eles são capazes de tomar conta uns dos outros. Esta característica permitiu aos mamíferos desenvolver relações mais profundas e mais complexas, formando assim comunidades com melhores capacidades de sobrevivência.
Relembrando que o ser humano também é um mamífero, poderemos facilmente confirmar a importância das emoções e dos vínculos na organização das nossas sociedades. Para melhor compreender esta afirmação, importa referir um célebre episódio que terá acontecido numa aula da ilustre antropóloga Margaret Meads.
Um aluno terá perguntado a Meads qual seria a primeira evidência do início de uma civilização. Seria de esperar uma resposta relacionada com a descoberta da pedra lascada, de armas ou de cerâmica. No entanto, a antropóloga indicou a descoberta de um fémur fraturado e cicatrizado, datada de há 15 mil anos, como o primeiro sinal do desenvolvimento de uma civilização. Margaret Meads explicou que, no reino animal, uma lesão crítica como um fémur partido resultaria no abandono e na morte do animal. Porém, o facto de ter sido encontrado um fémur humano com evidências de fratura e de posterior cicatrização sugere que alguém cuidou desta pessoa severamente ferida, evitando que esta tivesse uma morte prematura, agoniante e solitária.
A pandemia contribuiu para evidenciar vários problemas da sociedade (políticos, económicos e de saúde pública), mas também para expor facetas menos belas da nossa relação enquanto espécie. Perante o primeiro contacto com os horrores da pandemia, verificou-se um sentimento de união, de zelo e de solidariedade nunca antes visto em Portugal. De um modo geral, as pessoas recolheram-se nos seus lares, cumpriram regras de higiene e de segurança, manifestaram de diversas formas o seu apoio aos profissionais que continuaram em funções durante o confinamento (bombeiros, policias, funcionários do setor do retalho, médicos, enfermeiros, entre outros), bem como às vítimas da COVID-19 e aos seus familiares. Passado algum tempo, os números de novos infetados começaram a decrescer, assim como o número de mortos e de internamentos. Consequentemente, o governo foi aligeirando as medidas de contenção da pandemia, permitindo que a população recuperasse alguma da normalidade pré-pandémica.
Podemos então referir que a lição que (re)aprendemos com a pandemia foi: a solidariedade, a empatia e o sentimento de união são determinantes na sobrevivência da nossa espécie. Esta conclusão vai de encontro à ideia anteriormente expressa e retirada de A General Theory of Love bem como ao ensinamento de Margaret Meads.
Portanto, numa primeira fase, o terror da pandemia despertou em nós um sentimento de humanidade, sendo aqui humanidade entendida como a virtude do altruísmo e da compaixão expressa entre humanos.
Infelizmente, a pandemia não ficou controlada na primeira vaga. O número de novos contágios voltou a subir a pique, surgindo assim uma segunda vaga. Contrariamente ao que aconteceu na primeira vaga de contágios, a segunda não veio acompanhada de ondas de solidariedade e de sensibilização. As pessoas estavam fartas do confinamento e das medidas de contenção da pandemia. As regras sanitárias já não eram cumpridas com tanto rigor – as reuniões de familiares e de amigos já aconteciam sem máscaras e sem distanciamento, os centros comerciais voltaram a ser inundados de pessoas sequiosas de adquirir bens não-essenciais ou de passear
Depois da segunda vaga veio uma terceira. Depois da terceira, entramos agora na quarta. À semelhança da terceira vaga, a quarta tem correspondência com o período de celebração do Natal. Nesta fase, além das numerosas reuniões familiares, existe também uma grande afluência aos espaços comerciais, situações estas que podem contribuir para aumento do número de novas infeções. No entanto, apesar das recomendações do Ministério da Saúde, da informação amplamente disseminada sobre a COVID-19 e do bom senso, as pessoas parecem priorizar o consumo desmedido e o cumprimento das tradições nos moldes pré-pandémicos a adotar comportamentos preventivos. Embora esta seja uma tendência geral, não corresponde a um comportamento articulado e de consciência coletiva semelhante ao da onda de solidariedade que constatamos durante a primeira fase de contágios.
Na quarta vaga, as pessoas parecem comportar-se de forma mais individualista, crendo que individualmente não poderão contribuir para o agravamento do cenário pandémico ou que o controlo da pandemia não é da sua responsabilidade. Como escreveu o filósofo Voltaire, “nenhum floco de neve na avalanche se sente responsável”.
Neste momento, portanto, já não notamos uma humanidade como virtude; agora a humanidade assume apenas a forma do somatório de todos os indivíduos da espécie humana – uma humanidade como soma, como expressão matemática e não como a expressão de uma virtude, de uma ética, como vimos anteriormente.
Falar de consumismo torna-se particularmente relevante na medida em que persiste como uma prioridade em tempos que nos convidam (ou obrigam) a repensar as nossas escolhas. A questão do consumismo (ou do hiperconsumo) é mais antiga que o próprio SARS-COV-2 e os seus impactos negativos nas múltiplas esferas humanas (económica, psicológica, ambiental) não são de todo uma novidade. A pandemia, apesar de ser uma problema global, não afeta todas as pessoas de igual forma. Num mundo de assimetrias socioeconómicos consideráveis, de distribuição desigual de riqueza e onde mais de metade da população tem acesso limitado à saúde, torna-se difícil dar uma resposta eficaz e consistente à COVID-19. Como tal, seria de esperar que houvesse uma reformulação dos nossos hábitos de consumo e uma maior consciencialização para com as desigualdades e injustiças sociais.
Assim sendo, a COVID-19 poderia ter sido o soar do alarme a avisar que o ser humano está a ir no sentido errado. E assim pareceu, pelo menos, durante uns meses. Familiarizados com a pandemia, parece que voltamos aos velhos vícios.
Tivemos a sensação de que estávamos todos juntos no combate a um mal que ameaçava a nossa espécie. Provamos que somos capazes de ser altamente empáticos e de nos organizarmos em função do bem comunitário, independentemente das diretivas governamentais. Por momentos, pareceu que a pandemia nos recordou da nossa humanidade – esse sentimento de união global, de pertença e de responsabilidade para com algo maior que o simples indivíduo. Porém, voltamos a tropeçar no individualismo, na vaidade, no egoísmo, na alienação e na negação. Estes (e outros) problemas voltaram à luz do dia, como feras anteriormente enjauladas em câmaras subterrâneas.
A prioridade agora, aparentemente, já não é salvar a humanidade, mas que cada um sobreviva.
É inevitável afirmar que a pandemia provocada pelo SARS-COV-2 deu origem a alterações dramáticas a nível global. Face a esta crise sanitária, verificamos duas atitudes distintas expressas pela sociedade, correspondendo elas a duas conceções também distintas de humanidade. Houve uma fase de preocupação, de empatia e de união generalizadas, evidenciando uma noção de humanidade que representa uma entidade em que os seus intervenientes têm uma consciência coletiva, reconhecem-se como interdependentes e cooperam para o bem comum. Mais tarde, esta atitude foi substituída por uma outra – já antiga –, na qual o individualismo, o consumismo e alienação são as principais marcas de uma humanidade destituída do seu carácter filantrópico, da sua identidade plural e de cooperação – uma humanidade como cálculo, como contagem de indivíduos da mesma espécie biológica.