Com a adaptação de D’Este Viver Aqui Neste Papel Descripto, de António Lobo Antunes, o realizador Ivo M. Ferreira apodera-se de uma estória entre a História, recriando eloquentemente a experiência da Guerra Colonial Portuguesa (1961 – 1974).
Estamos no ano de 1971 e António (Miguel Nunes) vê a sua vida brutalmente interrompida quando incorpora o exército português, para servir como médico no Leste de Angola, uma das piores zonas do conflito que assombrou Portugal e as suas respectivas colónias no continente africano, durante quase 15 anos. Longe da mulher que ama, a quem redigi cartas com séria pontualidade, António terá que se adaptar, tanto física como psicologicamente, ao novo mundo, embora se afunde num cenário de crescente violência. Somente através dessas cartas de guerra, ou melhor, dessas poéticas cartas de amor, é que conseguirá sobreviver aos tenebrosos momentos que atravessa.
Em primeiro lugar, ao redigir uma crítica sobre Cartas de Guerra é importante felicitar o cineasta, os produtores, os atores e todos os outros membros da equipa técnica que investiram num filme português de tão profunda riqueza histórica, explorando um dos momentos contemporâneos mais marcantes na sociedade do século XX, além de ter ainda fortes repercussões nos dias correntes. Em segundo, não estamos perante um objecto de cariz mais ou menos televisivo, embora seja, dizendo de passagem, o mundo em que os seus actores principais estejam mais confortáveis. Não será o talentoso Ricardo Pereira (que oferece aqui um desempenho intimista), o mais internacional dos actores nascidos no nosso país, ao colaborar com a Rede Globo no Brasil?
Não obstante, Cartas de Guerra, que teve antestreia exclusiva durante o passado mês de Janeiro, no Festival de Berlim, no qual foi nomeado ao prémio principal do mesmo – o Urso de Ouro -, surge muito distinto de produtos como O Pátio das Cantigas, O Leão da Estrela e A Canção de Lisboa – os três remakes de “clássicos populares” do cinema português, que atingiram recordes de bilheteira – e mais próximo dos maravilhosos filmes como Tabu, de Miguel Gomes e até Mistérios de Lisboa, de Raul Ruiz, nem que seja pela sua profundidade dramatúrgica. Cartas de Guerra prima por ser exactamente esse filme que procura romper com uma cultura monopolista de talento de actores que é a televisão (não é o único, mas um dos poucos deste ano), em particular, o universo da telenovela. Mesmo assim, aqui não se pretende uma critica pejorativa aos projectos, sobretudo da SIC e da TVI, que diariamente lideram audiências. Aquilo que procuramos é uma chamada de atenção à necessidade de serem contadas histórias como Cartas de Guerra – pequenas estórias de pessoas reais – por coincidência de um dos escritores mais curiosos da nação – sem melodramas supérfluos. Ao pescar actores desse universo, Cartas de Guerra consegue retira-los das suas ditas zonas de conforto, sendo que, em seguida, pelos seus tão diferentes maneirismos expressivos, conseguem conquistar o espectador.
Aliás, não será Cartas de Guerra um dos melhores projectos a aliar cada imagem a cada palavra proferida? A voz-off parece nunca ter sido tão eficaz, tornando-se a base estrutural do projecto. As cartas que supostamente deveriam ser lidas pelo emissor da carta – António – são lidas por quem as recebe. Na doce voz de Vila-Nova pesa a ternura das palavras e uma emoção constante de saudade, justificando a morte eminente daquele ente querido, sobretudo numa altura em que ambos se preparam para serem pais da primeira filha. Como tal, essa poética do filme, que recai no domínio da transcendência e do quase espiritualismo comprova as comparações a filmes como Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, O Paciente Inglês (1996), de Anthony Minghella ou a A Barreira Invisível (1998), de Terrence Malick. Mesmo assim, será pertinente compararmos este Cartas de Guerra ao igualmente deslumbrante Hiroshima, Mon Amour (1959), de Alain Resnais, um dos títulos a surgir como fundador da Nouvelle Vague.
Não será preciso ir muito longe para ver como Cartas de Guerra poderá ter a mesma função, mas no nosso país. O mesmo negrume acompanha as estórias, que não são mais do que estórias de amores que procuram suportar a dor da perda. Para mais há uma cena peculiar de Cartas de Guerra que parece reenviar à sequência inicial de relação entre as personagens de Emmanuelle Riva e de Eiji Okada – sem saber se foi essa a intenção do realizador.
Outra questão fundamental é de que não estamos diante um filme com imagens nauseantes e ensanguentadas dos homens que perdem as suas vidas em combate, acrescentando isso ao seu realismo poético.
De um ponto de vista técnico, só a direcção de fotografia já transforma Cartas de Guerra numa obra “must-see”. Em contrapartida ao realismo narrativo, as imagens a preto e branco, reportam a um universo do onírico, do limbo, parecendo fruto da imaginação de um alguém atormentado quotidianamente pelo Post-Traumatic Stress-Disorder (PTSD), ou da própria Maria José – figura que, na vida real, já faleceu. O jogo entre realidade e sonho não dificulta a leitura da narrativa, apenas é uma opção que tomará logo ao início da projecção.
Com pouquíssimos diálogos, mas com frases pautadas pelo peso das palavras proveniente da fragilidade das personalidades, Cartas de Guerra consegue dar um passo em frente no cinema português. Digamos, que é um cinema que não está mais na sombra daquele dirigido pelo brilhante Manoel de Oliveira, mas que vive de si e para si.
Por fim, basta afirmar que podemos não estar diante o melhor filme português de sempre, mas que é preciso repensar que lugar os novos talentos devem ocupar junto de uma massa consumidora habituada a projectos comerciais de super-heróis.
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