Lavar a loiça, limpar o quarto, pôr o lixo fora, dar comida e banho ao gato. Tarefas que qualquer jovem ou já se acostumou a realizar ou é cobrado pelos pais de que faça. Quando ele ou ela cresce e passa dos 18, já ajuda a resolver problemas para os pais, tais como pagar contas ou comprar coisas para a casa, além de aprender a cozinhar, lavar a própria roupa e resolver as pendências da faculdade. Quando adulto, espera-se que esteja empregado, consiga viver por conta própria, tenha carro (ou ao menos a carta de condução), saiba manter a casa, pague os impostos e esteja à procura de constituir família. Assim, a vida segue até a velhice.
No entanto, no quotidiano actual, observa-se a proliferação de estilos de vida diferentes, proporcionada pela evolução da tecnologia e a modernização das sociedades. A instituição do casamento, embora ainda forte, já não tem o mesmo grau de importância que tinha no século passado. Cresce o número de mulheres que optam por não ter filhos, mesmo que sejam julgadas e criticadas aos olhos da sociedade. Cresce também o número de pessoas que escolhem morar sozinhas, pelas mais variadas razões de cunho individual: investir tempo no crescimento profissional e pessoal, sair da aba da saia da mãe, ou apenas ter um espaço para chamar de seu.
Essa transformação do quotidiano do indivíduo também abriu espaço para outro tipo de consequência: parece que os jovens hoje veem menos necessidade em aprender conhecimentos práticos valorizados pelos pais. A evolução da tecnologia tornou muito mais fácil o acesso aos mais variados serviços. Lavanderia, refeições, arranjo de móveis e eletrodomésticos… é muito mais prático mandar chamar um electricista para arranjar uma tomada avariada ou um canalizador para dar conta de uma torneira que não funciona do que tentar fazê-lo por conta própria. Por um lado, a pessoa não se arrisca a ficar sem energia ou abrir um vazamento e molhar a casa inteira por descuido ou desconhecimento. Por outro, resolve o problema, mas acaba gastando dinheiro que poderia ter investido de outra forma.
Por causa dessa mentalidade de poupança de esforço, há cada vez mais jovens que chegam à vida adulta com pouca ou nenhuma noção das responsabilidades que têm de enfrentar quando saem da casa dos pais. A geração millennial, tão falada actualmente, é a mais recente vítima dos olhares de desaprovação dos mais velhos, por ter anos e anos de carreira académica, mas pouco conhecimento prático, isto é, são capazes de criar um aplicativo ou editar vídeos para a internet, mas não sabem cozinhar um ovo. Vale lembrar que, hoje em dia, quem consiga fazer os dois e publique no YouTube pode estar em vantagem profissional.
Um pouco de experiência pessoal. Vivi sempre em ambientes urbanos e passei boa parte da minha infância confinado num apartamento, a ver desenhos animados ou a jogar videogame, enquanto uma doméstica cuidava das tarefas da casa e me fazia companhia. Coisas comuns de criança dos anos 90, até aí tudo bem. Contudo, parou de ser possível recorrer a isso e a minha mãe assumiu as responsabilidades de cuidar da casa. Ela também procurava me incentivar para ajudar de vez em quando, mas eu era uma criança muito indisposta quanto a essas coisas e acabei crescendo para me tornar um adolescente igualmente indisposto. Hoje, na casa dos 20, finalmente vejo que o pouco conhecimento que acabei adquirindo por força das circunstâncias faz diferença para a vida adulta. Além disso, ter a disciplina para cuidar da casa é um processo essencial para o amadurecimento individual.
Por essa experiência individual, eu consigo perceber uma faceta de uma realidade muito discutida actualmente: a de que os nossos pais se responsabilizaram por nós, preocupando-se em resolver os nossos problemas e nos proteger das dores do crescimento, na tentativa de nos oferecer melhores condições de vida do que eles mesmos tiveram. O problema dessa postura é que ela não prepara o jovem para uma vida independente, afastado da família. Desde não saber o que é partir um osso a não saber nadar ou andar de patins na infância a não querer viver experiências novas na vida adulta por medo do desconhecido. Isso ainda são barreiras que estou começando a transpor.
Ainda sobre as tarefas de casa, não sei se devo ficar confortável com o fato de que não é só comigo que isso acontece. Testemunho também que já vi lares de conhecidos da minha idade que mais pareciam galinheiros do que apartamentos de jeito, de tão desarrumados que estavam. Não me considero a pessoa mais preocupada com isso de arrumar a casa, mas nunca cheguei ao ponto de encher a cama de peças de roupa, ou deixar pontas de cigarro e outros utensílios acumulados na minha mesa de trabalho (até porque eu não fumo). Além disso, é comum eu ouvir de conhecidos que não sabem cozinhar ou que preferem pedir comida fora a cozinhar em casa justo pelo trabalho que dá, embora percebam que estão a gastar dinheiro com isso.
Do aparente descuido com as pequenas coisas à incerteza com as grandes. Com a instabilidade económica dos tempos actuais, desfez-se a realidade de que um diploma universitário era garantia de encontrar trabalho e isso teve um impacto enorme nas escolhas de carreira que os jovens fazem. Enquanto alguns mais decididos não pensam duas vezes antes de arrumar as malas e mudar-se para outro país em busca de melhores oportunidades e condições de vida, outros tantos simplesmente não sabem o que hão de fazer da vida e ficam presos à inércia. Outro factor que pode pesar muito para esse sentimento de incerteza são as escolhas que o jovem tem que fazer e as consequências que elas carregam em meio a um universo complexo e diversificado de carreiras e percursos profissionais, marcado pela instabilidade no mercado de trabalho no qual os jovens encontram crescentes dificuldades de inserção.
Que encarar a vida adulta não é um processo fácil, todos nós já estamos fartos de saber. No entanto, hoje em dia, há quem, por escolha ou por outras razões, acabe “estendendo a adolescência” e protelando o acto de aceitar os desafios e contradições inerentes a uma vida independente. Há gente com 30 anos que ainda mora na casa dos pais mas não tem a maturidade ou as ferramentas suficientes para tentar criar o próprio caminho. A responsabilidade de tomar as próprias decisões e arcar com as consequências é algo que nos assusta e podemos ficar paralisados com a pressão de escolher um caminho, mas a verdade é que isso é uma parte inescapável da experiência humana.
Quanto mais cedo fazemos as pazes com a complexidade da vida adulta, mais preparados estamos para lidar com ela. Não digo que estou 100% alinhado com esse discurso, pois é um processo longo e contínuo, cujas lições a gente não estuda nem encontra prontas nos livros. Só as vivências e a coragem de aceitar novos desafios são o guia para seguir adiante. Assim que a gente percebe que lavar a casa de banho ou deixar a loiça organizada não faz cair o braço, tomar decisões mais importantes e dar um rumo à própria vida torna-se muito menos complicado.
Nossa, o seu texto, feliz ou infelizmente (kk), deu-me um sopro de alívio. Porque consegui me ver no tipo de jovem, que está chegando nos 20 anos e ainda está muito cru para lidar com responsabilidades cotidianas. Já estou no 2° ano da faculdade, mas agora me liguei do tempo que perdi em casa e com poucas interações, e já estou buscando maior independência (aprontei meu cartão do banco, aprendi a fazer trajetos de trem, a r solver documentos pessoais).
Ainda tenho uma longa jornada pela frente, mas se com você parece estar dando certo, quero conseguir também 🙂 abraços do Brasil, compatriota!