Estavam os dois, lado a lado, no cimo das escadas de mármore de 3 degraus. Ele, um homem alto. Ela, mais pequena, apoiada na bengala. Encostados um ao outro, octogenários e sorridentes pelas visitas que chegavam. Antes de irmos, telefonámos. Hesitámos na visita, o covid ainda trava os relacionamentos, e sabíamos de antemão que não seria uma visita fácil.
Ele, chamemos-lhe José, sofrera recentemente um avc.
O homem robusto dera lugar a um ser mais magro e frágil no seu equilíbrio. A voz mudara. A sua memória dos tempos em que incorporava a energia e a inquietude de estar sempre a inventar o que fazer, surgia intermitente. Olhou-nos com a surpresa de ver alguém conhecido, alegrando-se, mas sem nos conhecer. Ver sem olhar. Arranjou-nos nomes e parentescos que não temos. Desconhece a família próxima a quem reinventa casamentos e filiações. De quando em vez fala frases a que não conseguimos dar sentido. Outras vezes parece voltar ao homem que era , esquecendo-se da sua debilidade, e fala de obras que quer fazer em casa, que acha que deixou a meio. Dizemos-lhe que chove e não é a altura certa. Parece acatar.
Ela, chamemos-lhe Joaquina, mais velha 2 anos, balança quando anda, numa dança a 3 pés. O cabelo impecavelmente pintado de castanho, um robe quentinho sobre a roupa. Mulher de doenças várias, que lhe toldam os movimentos, vê-se agora a braços com um homem que a acompanha há pelo menos 60 anos, e que até há bem pouco tempo era o suporte físico dela. O amparo no andar, nas voltas em casa, na condução do carro, o que subia ao andar de cima onde tinha uma extensa criação de pássaros. Hoje já não os tem, e é ela que zela por ele.
Os filhos e os netos são presentes. Apoiam-nos em tudo, na logística alimentar, de higiene, intervenções médicas, todos os cuidados necessários. Mas o casamento é apenas de ambos. A maior parte do dia é vivida a dois, entre memórias e falta delas, conversas e desconversas.
Custa-me ver a perda das capacidades dele, súbita e inquietante. Pergunto-me o que ele, aquele homem activo que conheci desde sempre, diria dele próprio, se de si tivesse consciência. Não sei se tem, às vezes articula palavras com dificuldade e perde-se no raciocínio, irrita-se com isso. Terá dito à mulher que esperava morrer antes dela, mas quando a vê a sofrer das suas patologias, talvez pense que lhe sobreviverá, e teme pelo seu próprio futuro solitário. Umas vezes regressa a si, outras não. Mas tem um riso vivo, gosta de conversar com as visitas que se mostram um pouco perdidas porque não sabem quem está ali naquele instante. O riso é pueril, quase infantil, como o olhar. Sorri frequentemente. Fica feliz com as visitas. Desde que ela lhe disse que viríamos, ficou num entusiasmo imenso.
As visitas, incluindo eu própria, arregalam os olhos para perceber a conversa dele, avaliando do sentido da mesma. Atento nela, que o olha serena, na mansidão de quem já aprendeu a lidar com ele, ou com a ausência parcial dele. Olha-o com uma tal ternura, com uma capacidade resiliente, que acredito só um grande amor conceda. Não lhe atropela a fala com sugestão precipitada de palavras, deixa-o falar ao ritmo dele, mesmo quando ele se esquece e pára a meio. Ela não se enerva, ou melhor dizendo, não o demonstra. Não o contraria, não o corrige com a verdade dos factos.
Ela pega-me pela mão e leva-me ao quarto ao lado, onde me mostra a quase farmácia que ali tem, pela quantidade e variedade de medicamentos para ambos. Digo-lhe, agora que nos julgo fora do alcance dele, que ela tem, como sempre teve, uma capacidade sobre-humana em resistir à dor que esta vivência lhe causa. Abraço-a e digo-lhe que gosto muito dela, como já lhe disse outras vezes. Abraçamo-nos e as lágrimas correm pelos nossos rostos.
No quarto ao lado, apesar de acompanhado, ele apercebe-se que ela chora, e grita: – não te quero a chorar. E acrescenta para os presentes: – de que adianta chorar?! Há momentos em que a clareza de espírito é imensa, e confunde-nos. Ela limpa o rosto como pode, e entra na sala a dançar, que não estava nada a chorar, que me foi mostrar a farmácia. Eu não consegui entrar de imediato, fiquei a secar as lágrimas e a vê-la, do corredor, a abanar com dificuldade as ancas, enquanto lhe dizia: – estou a dançar, Zé, estou a dançar, lembras-te, como dançávamos em Luanda? E ele ri. Muito.
Ele olha-a com extremada ternura, embora em tempos a sua memória para com ela não tivesse sido justa, e não a reconhecesse como sua mulher há 6 décadas. Agora ele já sabe que ela é o amor da vida dele.
E se, a espaços, tem dúvidas, pergunta-lhe: tu és o meu amor, pois és?