Aquando da viagem a Viena, visitámos o Instituto Wiesenthal para os Estudos do Holocausto, depois do apertado controlo à entrada, um tanto sinistro, dada a desconfiança e ausência de turistas. Resultou, para todos – a Sofia, a Amélia, a Patrícia e eu – numa impressionante viagem a um passado – o holocausto – que começa a ser esquecido, resquícios da passagem de testemunho da memória viva, que já quase desapareceu, para o boca a boca intergeracional. É essa perda de memória, arrisco-me a dizer, mais até do que a brutalidade de qualquer acontecimento que ela – a memória – guarde e recrie no presente, que forma o grande drama humano do nosso tempo.
O respeito pelas vítimas de qualquer acto hediondo, seja um genocídio ou qualquer manifestação sucedânea de ódio, merece permanecer intocável, mas para a minha geração, que (felizmente) não viveu nenhuma guerra ou atrocidade na sua terra ou junto a ela, é a memória, mesmo que contada, que alimenta o respeito e nos mantém alerta contra os perigos da maldade, do totalitarismo, e do ódio.
A solidariedade não nasce num vaso regado na varanda lá de casa ou na terra do quintal das traseiras, mas cresce com as épocas. A perseguição que Simon Wiesenthal fez no seu tempo aos nazis, muitos fugidos para a América do Sul, com o objectivo de os trazer para Israel e assim julgá-los, condenando porventura alguns à pena de morte, foi um acto heróico e louvável. Tenho dúvidas se hoje seria visto da mesma forma.
Daniel Oliveira – o jornalista – disse há meses num programa de comentário que o bombardeamento de Dresden foi um dos maiores crimes de guerra da História nunca julgados.
Mário Soares, num programa de conversas gravado há anos em resposta a Clara Ferreira Alves, confessou, depois de questionado
– Onde estava e o que sentiu com o lançamento da primeira bomba atómica sobre o Japão?
– Estava na Foz do Arelho, e lembro-me de termos sentido um grande alívio.
– Mesmo sabendo que milhares ou milhões de pessoas morriam de uma forma tão brutal?
– O mundo estava em guerra há seis anos, uma guerra que na altura ninguém estava a ver como podia terminar. A bomba marcou o fim da guerra e o início da paz.
As palavras, reproduzidas de memória, não terão sido exactamente estas, mas a ideia foi. As duas perspectivas ilustram, com grande acuidade, a diferença entre um julgamento à posteriori, com base em critérios de outra época, de um acto que, à luz do modo como hoje olhamos para a sociedade, nos parece bárbaro – o bombardeamento de Dresden – e o sentimento de quem se viu desgastado por uma guerra brutal e interminável, de quem se viu no olho do furacão ansiando por uma paz de que provavelmente já não se lembrava, e uma bomba capaz de destruir a humanidade era vista como o milagre que devolvia ao mundo a paz quimérica após o sadismo nazi e a loucura kamizake, após a chacina de seis milhões de judeus e muitos mais milhões de soldados e (outros) inocentes.
O problema de se lançar hoje uma bomba atómica, por mais que nos queiramos convencer que é o facto de, por diversas potências a terem, tal acto iniciar uma guerra nuclear à escala planetária, não me parece ser esse: creio que tem a ver com o sentimento de justiça, humanidade e solidariedade que alastrou pelo mundo com a televisão, a Internet e as comunicações, esbatendo as noções clássicas de bons e maus (mesmo que a invasão da Ucrânia nos tenha recordado que ainda existem maus à antiga, daqueles que só o fanatismo é capaz de defender). Lançar hoje uma bomba atómica, seja sobre que população for, é para nós inaceitável (arrisco afirmar, de um jeito incondicional). Tal como o bombardeamento de Dresden. Tal como Gaza, Mariupol, a Síria ou o Iémen. Poderá um estado falhado justificar a chacina de um povo, ou mesmo de um país?
É um exercício difícil libertarmo-nos das correntes éticas do hoje, para vestirmos a farda de um ontem cada vez mais distante. Difícil porque, com a memória viva a desvanecer-se naturalmente, era necessário mais conhecimento e curiosidade, menos ignorância e teorias da conspiração. A escola tem tido nisso uma culpa gritante, com um facilitismo que abomina tudo o que chame o esforço e endeuse qualquer forma que remeta para o facilitismo. O resultado está à vista: sem o testemunho vivo de quem viveu os horrores do passado mais ou menos recente, restaria o estudo; na ausência deste, perdem-se não só as referências objectivas ao que aconteceu, como o esforço de compreensão para nos colocarmos no lugar e no tempo dos que sofreram.
É por isso que tento compreender Simon Wiesenthal, Mário Soares e os bombardeamentos a Dresden ou Hiroshima. E é também por isso que compreendo Daniel Oliveira sobre o mesmíssimo bombardeamento de Dresden.
O justicialismo (na altura, justiça) de Wiesenthal não seria hoje admirado, mas atacado por uns e glorificado por outros. E os critérios seriam muito pouco objectivos ou éticos, e (cada vez) mais tribais ou corporativos. Seja pela religião, cor clubística ou seguidismo partidário, pouca esperança tenho que estas tribos, cada vez mais arreigadas nas suas bolhas, olhem para cores diferentes das suas e vejam com agrado e orgulho a possibilidade de construir pontes. O que se vê é sim um apontar de dedo que empurra o outro lado para um extremo inaceitável, para concluir que os únicos “decentes” somos nós. O princípio do totalitarismo.
Não há povos eleitos ou escolhidos, sejam judeus, católicos ou muçulmanos, comunistas, como não há países em si mesmos mais válidos ou uma ideologia que seja a única aceitável, falemos nós de socialistas ou sociais democratas, de americanos, russos ou israelitas. A memória histórica e, na sua natural dissolução, a curiosidade em conhecer o passado (poupem-me às balelas positivistas de que o futuro é que é, e que o passado não importa) talvez mostrasse a alguns ignorantes que certos fenómenos não são assim tão novos, e que o mundo não começou no dia em que nós nascemos.
Regresso à pacatez do Instituto Wiesenthal, duas ou três salas simples, mas tão cheias, bem no coração de Viena, e ao arrepio e admiração que sentimos por aquela figura. Naquele tempo, aquela perseguição soou mais a justiça do que a vingança. Porque há um tempo para tudo: prender hoje um ex-nazi talvez configurasse mais um acto vingativo do que justo. O mesmo se aplica aos crimes cometidos do outro lado da cortina de ferro, uma realidade tão olimpicamente ignorada em boa parte do ocidente. Naquele silêncio vienense, vimos testemunhos de judeus e a biografia de um homem que, depois de tudo o que passou, conseguiu reunir forças para refazer a sua vida em torno de um objectivo. O mundo mudou e outras formas de justiça são necessárias para não deixar o campo aberto à barbárie. Não serão mais as perseguições e os bombardeamentos, indiscriminados ou não, que se estendem por meses, anos ou mesmo décadas. No abstracto e em tese, não sei dizer o que será, mas conhecer a matéria que estamos a julgar ou sobre a qual estamos a opinar, é o primeiro passo para não seguir o rebanho, cada vez maior, da ignorância.