É claro que temos sempre razão. É claro que, quando dizemos que uma coisa de que gostamos é melhor do que aquela preferida pelo interlocutor, é porque é mesmo assim. Nem há hipótese de ser doutras maneiras.
Como o mesmo pensa o adversário. Se forem ambos casmurros, acontecem aqueles momentos insuportáveis para outros presentes, além de que os teimosos acabam por ficar com dores no fígado, estômago, coração, cérebro e alma. Um teimoso nunca teima sozinho.
Se disser a alguém que não deve aquecer um vinho e, se essa pessoa, na sua casa, insistir que esse é o modo correcto, o que se há-de fazer? Ser mal-educado e não beber a “sopa”, ou tragar de cara alegre, porque o convívio é que importa? Prefiro a segunda hipótese, até porque ter vinho no copo não significa que se o vá beber, bastando uns biquinhos, quando o amigo olha para nós.
Quando o oponente é um comerciante, aí já é diferente. Uma vez pedi uma aguardente velha e o prestimoso empregado decidiu aquecer o copo. Pedi-lhe para não o fazer, mas respondeu-me que assim é que era. Repeti-lhe como queria e que não aceitava o copo quente. Expliquei-lhe que o calor volatiliza os aromas, o que numa aguardente, que já por si é bastante alcoólica, com subtileza e complexidade, é catastrófico.Como o homem estava peremptoriamente certo, porque é mestre do ofício, não me ligou e serviu-me o destilado em copo aquecido. O cliente não tem sempre razão, mas tem o direito de consumir como entender. Se quiser comer a sopa com um garfo, que lhe faça bom proveito. Resultado: deixei o copo no balcão e vi-me embora. Ele que o bebesse.
Faz tu, se quiseres
Contou-me um empregado de topo, num hotel de cinco estrelas, que a Madonna, uma das vezes que veio actuar a Lisboa, pediu um Pétrus. Para quem não sabe, trata-se dum vinho de Bordéus, concretamente de Pomerol, e que tem a fama de ser o melhor vinho do mundo – coisa que não existe. Muitíssimo caro, é. Num site da especialidade, uma garrafa da colheita de 2013 custa 1.170 euros, impostos não incluídos.
Nunca vi o extracto bancário da senhora Ciccone, mas, nas revistas de mexericos e nas rigorosas de economia, a fortuna está estimada entre mais de 445 milhões de euros e mais de 890 milhões de euros. Se tem 445 milhões de euros até pode lavar os dentes com Pétrus e a cara com RomanéeConti. Foi mais ou menos o que aconteceu. Madonna sentou à mesa do restaurante desse hotel lisboeta de cinco estrelas e pediu Pétrus e Coca-Cola… (suspense)… misturou as bebidas. Não sei se por sua própria mão, ou através da do escanção.
Há uns meses conversava com um escanção, laborante num restaurante de luxo, e este episódio veio à baila. Disse-me que, se lhe acontecesse, serviria o vinho, mas não verteria o refrigerante no copo. Se ela quisesse estragar um vinho sublime que fosse ela a fazê-lo. O respeito por um néctar impede-o de juntar as duas bebidas. Como uma espécie de Juramento de Hipócrates dos escanções.
Não é preciso ir a extremos para ver um vinho ser abatido. Do caro ao plebeu, quem não viu alguém jogar água, ou gasosa num copo de vinho? Vi muitas vezes. Esse acto considero-o de bárbaro. A água é a mais nobre bebida e o vinho vem atrás, mas o casamento, num copo, é mútuo homicídio e suicídio.
É bárbaro digo eu e “toda” a gente da vinhosfera. Contudo, quão vândalo é esse cocktail? Sempre foi assim? Não, não foi. Sempre se jogou água no vinho – por diversas razões – porém, a consideração de alarvidade será “recente”?
Apanhados do clima
A vida é frágil. A Terra tem cerca de 4,5 mil milhões de anos, porém, a vida terá começado há mil milhões. Calamidades arrasaram sistemas ecológicos. Sismos, erupções vulcânicas, objectos espaciais, inclinação do planeta e tempestades solares são responsáveis por modificações ambientais. Alterações com consequências nas colheitas, causando revoltas populares e quedas de dinastias e impérios.
Desde 1970 até ao presente que se assiste a um acentuar do aumento da temperatura da Terra. Ao contrário de momentos anteriores, esta é causada por um ser vivo. A rapidez com que se processa vitimiza ecossistemas, mas mudanças abruptas sempre as houve.
As ciências da terra e a biologia não vêm ao caso despropositadamente, estão no centro da crónica. O aquecimento global faz com que hoje seja possível fazer-se vinho no Sul de Inglaterra. No Douro, há bastante gente a procurar encostas voltadas a Norte e/ou com altitude mais elevada. A preocupação leva com que grandes empresas vínicas, universidades e o Estado estejam a desenvolver ensaios de castas. Se o caminho continuar em direcção ao calor, muitas das variedades cultivadas terão problemas de sobrevivência e capacidade de gerar bons vinhos.
De há 20 anos para montante, os vinhos eram muito menos alcoólicos. O normal situava-se entre os 11º e os 12,5º de álcool. O Vinho Verde não chegava a tanto. As areias batidas pelo vento atlântico de Colares geravam vinhos de 11º e 12º, actualmente já se chegou aos 13º. No Douro e no Alentejo, é comum os 14º e mais. Até há um produtor que fabrica uma sopa com 17º – é um conceito.
Ainda que se ponha de lado a questão do auto-controlo na ingestão, o certo é que é quase impossível alguém se levantar direito depois de beber vinhos com 14º, ou 14,5º. Ainda que os néctares tenham acidez suficiente para domesticarem a brutalidade alcoólica.
Julgo que não é permitido, no fabrico, adicionar água ao vinho. Não percebo, pois tratam-se de dois bens alimentares. Cortar um vinho por um técnico habilitado não tem nada de mal. Obviamente que muita gente, mesmo muita, adiciona água, nomeadamente nas zonas mais quentes. Não se pode saber…A água é um produto enológico como as leveduras, ou as barricas.
Ao contrário do que acontece à mesa, pois aí trata-se dum produto acabado e a quantidade atirada vai a olhómetro.
Barbaridades
Voltando à ciência, nomeadamente a que diz respeito ao clima. Embora haja estudos dissonantes, aceita-se como verdadeiro o arrefecimento desde há um pouco mais de 2.000. Ou seja, se não fosse a actividade humana, hoje teríamos mais frio do que o sentido pelos nossos bisavós.
Esta evolução não é em linha direita. Entre os séculos XIII e XVII, houve um período muito frio. No tempo do Império Romano, havia muito mais calor, pelo que as uvas eram mais doces. Mais doce significa mais álcool.Para um romano, quem não cortasse o vinho com água comportava-se como um bárbaro. Era mal visto e alvo de censura. Pois, um vinho muito alcoólico tolda o pensar e o agir. Um vinho muito alcoólico era uma sopa imbebível para um cidadão civilizado.
Hoje, graças a enormes avanços no conhecimento científico e grandes progressos na tecnologia, há muitíssimos vinhos com muito álcool, mas que se conseguem beber sem sentir uma paulada na cabeça. Até se consegue desalcoolizar.
Desde a sabedoria da mão que deita água no fabrico, aos produtos enológicos, às escolhas de solos mais ácidos, de castas melhor adaptada… o vinho com muito álcool pode ser bebido com agrado, sem que se confunda com uma sopa, ou compota.
Ouvi a um dos melhores enólogos de Portugal que o problema não é o vinho ter muito álcool. O problema é se tem muito álcool e não tem acidez para se equilibrar. O efeito na cabeça é o mesmo que um desacertado, mas o agrado é incomparável
Em resumo: baptizar um vinho à mesa é bárbaro, na adega é ciência e há 2.000 era de bom-tom fazê-lo.