O Pequeno Ponto Azul

Com grande pena minha, não consegui encontrar a data de emissão original de “Cosmos”, na RTP. Sei que foi emitida pela PBS nos Estados Unidos da América entre Setembro e Dezembro de 1980, portanto, desconto um pouco para Portugal. Deveria ter 7 ou 8 anos, em 1981/82. Foi ao ver “Cosmos” e descobrir Carl Sagan, que fiquei fascinada, real e absolutamente fascinada pela Ciência e que passei a estar mais interessada em Astronomia do que em ser astronauta… Afinal há um universo inteiro por explorar, uma história do homo sapiens por descobrir, sequências de pares de bases no DNA por descobrir.

Descobri que saber mais é viciante e intrigante. “Cosmos” brindou-nos com imagens e efeitos especiais topo de gama para os anos 80 (e envelheceu suavemente e brilhantemente como um bom Porto). Carl Sagan inspira-nos a saber e a procurar.

Não é o meu herói, porque penso nesse “título” como algo um pouco redutor. É, sim, uma das pessoas que mais admiro, não só pela capacidade de explicar temas complicados a uma plateia televisiva, mas por todo o seu percurso de vida.

“Nós conseguimos tirar essa fotografia (a partir do espaço profundo), e se olharem para ela, verão um ponto. É aqui. É a nossa casa. Somos nós. Nele viveram as suas vidas todas as pessoas de que já ouviram falar, todos os humanos que alguma vez viveram. A soma de todas as nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e presas, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilizações, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados, todas as crianças esperançosas, todas as mães e pais, todos os inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as super estrelas, todos os líderes supremos, todos os santos e pecadores da história da nossa espécie, viveram lá, num punhado de poeira, suspenso de um raio de sol.

A terra é um palco muito pequeno numa arena cósmica vasta. Pensem nos rios de sangue jorrados por todos os generais e imperadores, para que em triunfo e glória se pudessem tornar os donos momentâneos de uma fracção de um ponto. Pensem nas crueldades intermináveis infligidas por habitantes de um canto do ponto, a habitantes, praticamente indistinguíveis, de outro canto do ponto. Quão frequentes são os seus desentendimentos, quão desejosos estão de se matar uns aos outros, quão fervorosos os seus ódios. Os nossos maneirismos, a nossa auto-importância imaginária, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo, são desafiados por este ponto de pálida luz.

O nosso planeta é um solitário ponto na grande escuridão do cosmos envolvente. Na nossa obscuridade – em toda a sua vastidão – não há nenhuma pista de que possa vir ajuda de algum outro lado para nos salvar de nós próprios. Só depende de nós. Costuma dizer-se que a astronomia é uma experiência de humildade, e, posso acrescentar, que é formadora de carácter. Na minha mente, não haverá talvez melhor demonstração da loucura dos conceitos humanos que esta imagem distante do nosso pequeno mundo. Para mim, sublinha a nossa responsabilidade de lidar com mais gentileza e compaixão uns com os outros para preservar e prezar esse pequeno ponto azul, a única casa que alguma vez conhecemos.” Carl Sagan, discurso na Universidade de Cornell, 13 de Outubro de 1994

Carl Edward Sagan nasceu a 9 de Dezembro de 1934, em Brooklyn, Nova Iorque, filho mais novo de Samuel (emigrante russo) e Rachel, irmão de Carol. O pai trabalhava na indústria de vestuário, a mãe era dona de casa. Embora com poucos meios, sempre estimularam a curiosidade inata de Carl e o seu gosto por aprender.

Nas suas memórias de infância, que descreve nalguns dos seus livros, Sagan relembra a visita à Feira Mundial de 1939 (em Nova Iorque), com a exibição “America of Tomorrow” (espelho do futuro, mostrando os primórdios da televisão, por exemplo). Destaca também as visitas ao Museu Americano de História Natural e ao Hayden Planetarium (em Manhattan).

Nos tempos livres, ia para a biblioteca publica ler livros sobre as estrelas, ou instalar sets de química dados pelos pais (acabou por ter um laboratório em casa). Descobriu também a ficção científica, através de H.G.Wells e Edgar Rice Burroughs. A cereja no topo do bolo seria a revista “Astounding Science Fiction”.

Estavam reunidas as condições para formar um cientista. Sendo um aluno brilhante no liceu, Sagan interrogava-se se a Astronomia podia ser uma profissão de futuro ou apenas um passatempo. Com a Space Race prestes a começar, acreditou que sim.

No fim do liceu, escreveu um ensaio onde questionava se o contacto humano com formas de vida avançadas de outros planetas poderia ser tão desastroso para os terrestres como tinha sido para os Nativos Americanos o primeiro contacto com os Europeus. Apesar do assunto controverso, a sua capacidade retórica valeu-lhe o primeiro prémio.

Estudou Física na Universidade de Chicago, onde se licenciou, concluiu o mestrado e o doutoramento. Trabalhou com o geneticista H. J. Muller (Nobel da Medicina em 1946, pela descrição dos efeitos das radiações em mutações genéticas) e com o bioquímico Harold Urey (Nobel da Química, 1934, pela descoberta do deutério), tendo colaborado no seu trabalho pioneiro sobre a origem da vida (“sopa primordial”). A sua tese de doutoramento, Physical Studies of Planets, foi submetida ao Departamento de Astronomia e Astrofísica, em 1960, e teve como orientador Gerard Kuiper (considerado o pai da ciência planetária moderna).

Para além de uma extraordinária capacidade de aprendizagem, Sagan teve a sorte de privar com os cientistas mais conceituados do início da segunda parte do século XX, assim como na criação da NASA desde o seu início. Tal como Newton, vê mais longe, subindo aos ombros de gigantes.

Entre 1960 e 1962, foi bolseiro na Universidade de Berkeley, Califórnia. Até 1968, foi Professor Assistente na Universidade de Harvard e no Observatório Smithsonian, em Massachusetts. Finalmente e até à sua morte, foi Professor e Director do Laboratório de Estudos Planetários na Universidade de Cornell em Nova Iorque.

Em 1961, publicou um artigo na revista “Science”, sobre a atmosfera de Vénus, sugerindo que esta seria seca e muito quente, devido a um forte efeito de estufa (contrariamente ao pensado na altura). Colaborou com o Jet Propulsion Lab nas primeiras missões Mariner a Vénus, que confirmaram as suas conclusões.

Foi conselheiro da NASA também nas missões Apollo e na construção e desenvolvimento de várias sondas robóticas enviadas na exploração do Sistema Solar. As sondas Pioneer 10 e 11 (1972/73) transportam placas de alumínio anodizado com informações acerca da origem das naves.

As sondas Voyager 1 e 2 (1977) transportam também um disco áudio-visual banhado a ouro, com fotografias da Terra, as suas formas de vida, informações científicas, saudações em 55 línguas, “sons da Terra” que incluem sons de baleias, um bebé a chorar, ondas a baterem na costa e uma colecção de música, incluindo Bach, Mozart, Chuck Berry e músicas indígenas de todo o globo.

A missão primária das Voyager foi o estudo de Júpiter e Saturno, caminhando depois para o espaço exterior. Quando a Voyager 1 passou por Saturno em 1980, Sagan propôs que a sonda tirasse uma última fotografia da Terra, sabendo que não teria grande valor científico, uma vez que a Terra estaria demasiado longe para as câmaras da Voyager captarem algum detalhe, mas seria muito significativa como maneira de pôr em perspectiva o nosso lugar no universo.

Em 14 de Fevereiro de 1990, antes de desligar permanentemente as câmaras fotográficas, a 6 biliões de quilómetros da Terra, a Voyager tirou a colecção “Family Portrait” do Sistema Solar, entre as quais o célebre Pale Blue Dot.

Poderia continuar a falar de feitos científicos por vários artigos mais. Carl Sagan era também um cientista com vários objectivos: a partir da descoberta do efeito de estufa em Vénus, voltou-se para o mesmo efeito na Terra e para os efeitos do aquecimento global; foi contra a escalada nuclear entre os EUA e a então URSS, tendo cunhado a expressão “Inverno Nuclear”; foi pioneiro na pesquisa de vida inteligente fora da Terra, tendo fundado o SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence), que colocou activamente radio-telescópios a “ouvir” o universo (e as mensagens que ele possa enviar).

No entanto, tudo isto não passa de um resumo. Carl Sagan escreveu vários livros, “devolveu” a Ciência aos leitores ávidos, foi um eterno optimista, curioso e céptico, três características fundamentais para estudar, experimentar, descobrir e repetir de novo.

Estamos numa altura em que a Ciência é negada diariamente, não porque seja difícil, mas porque é inconveniente. Porque não dá as respostas que se quer. Porque não cabe nas pesquisas do Google. Porque não é um sistema de crenças, mas um sistema de conhecimento que se vai aperfeiçoando. De alguma maneira, a ciência para uma grande plateia tornou-se algo escasso. Os dados tornaram-se herméticos e a população demasiado convencida que a lei da internet é mais forte.

Precisamos de divulgação e de alguém que nos relembra, de novo, o nosso lugar no Universo. God Speed, Carl.

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Contributos para Carl Sagan versão 2.0:

# Carl Sagan – A Way of Thinking

# Vangelis – Heaven and Hell (Cosmos OST)

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