Minissérie
7 episódios
*Atenção: Contém spoilers*
À primeira vista eu nunca teria qualquer tipo de interesse por esta minissérie. O tema, achava eu feita ingénua, era monótono e pouco atrativo, e conseguir convencer alguém a assistir a 7 episódios de algo assim, deveria ser, no mínimo, uma tortura.
Oh! Quão enganada andava eu!
Foi, então, por pura teimosia e curiosidade que resolvi espreitar esta minissérie que fala sobre — atenção, rufar de tambores — xadrez.
Falamos de “Gambito de Dama” que estreou na Netflix a 23/10/2020 e é baseado no livro com o mesmo nome, publicado em 1983 e escrito por Walter Tevis.
Tem como personagem principal Elizabeth Harmon (Anya Taylor-Joy) que vimos, também, em filmes como “Fragmentado” de 2016 e a sua continuação com “Glass” de 2019, no entanto, sem desmérito perante os outros, em “The Queen’s Gambit” ela está, simplesmente, maravilhosa.
“Gambito de Dama” passa-se nos anos 50 e conta a história de Beth Harmon, uma rapariga que, após a morte da sua mãe, é recebida num orfanato onde conhece Mr. Shaibel (Bill Camp) e descobre a sua paixão/obsessão pelo xadrez.
Conhecemos uma pequena Beth, tímida, reservada, que não sorri e com pouco interesse pela escola ou por qualquer outra coisa para além do xadrez. Logo no primeiro episódio percebemos estar perante um pequeno prodígio. A relação com Mr. Shaibel, na sua calma e tranquilidade em oposição à sede de aprendizagem de Beth, deixa, imediatamente, o telespectador vidrado neste enredo.
Ao mesmo tempo queremos entender a história de vida de Beth, que fica órfã no seguimento de um acidente de viação com a mãe. Ao longo dos episódios vamos recebendo alguns flashbacks da sua infância, da não-relação com o pai e da personalidade transtornada da mãe que nos ajudam a compreender determinados comportamentos do personagem principal. Imediatamente nos conectamos com esta realidade de menina desprotegida e solitária que se agarra com determinação àquilo que será o seu dom, ainda que não o saiba.
As primeiras cenas que revelam o tamanho da sua destreza mental acontecem quando, não tendo um tabuleiro de xadrez onde possa praticar, Beth, recria os seus jogos no teto do quarto. Começamos, aos poucos, a ver as peças de xadrez a tomarem forma e a crescerem de tal forma nas suas sombras que acabam por cobrir Beth de uma escuridão impenetrável. Para mim, uma das melhores metáforas da minissérie. Beth revela-se, em pouco tempo, um génio do xadrez ao ganhar todos os adversários que encontra pela frente.
No entanto, Beth é impedida de jogar pela direção do orfanato, uma vez que, após ser medicada diariamente pelo mesmo com calmantes, esta vicia-se nestes, achando que só seria possível concentrar-se ou recriar os jogos na sua mente sob o efeito dos comprimidos. Quando não consegue ter acesso a estes, resolve roubá-los. O vício manifesta-se fortemente quando, após os ter, toma uma quantidade absurda e desmaia. A direção do orfanato apanha-a em flagrante enquanto ela cai inanimada no chão.
Beth cresce e, já adolescente, é adotada por um casal. Facilmente percebemos que a vontade de adotar uma criança parte somente da mãe, Alma Whetley, interpretada por Marielle Heller. Trata-se de uma pessoa mentalmente instável e que projeta as suas inseguranças na criança que aceitou acolher. O pai é ausente e desligado da mulher, e da recentemente adotada filha. Até ao dia em que parte de vez, deixando Beth aos cuidados de Alma.
Sozinhas e sem forma de sustento, Beth resolve participar no seu primeiro campeonato de xadrez, contudo para o conseguir pede a Mr. Shaibel que lhe empreste o dinheiro para a inscrição, prometendo devolver o dobro, caso saía vencedora. Seria esperado pelo espetador que Beth vencesse, todavia todo o processo de chegada, inscrição e descrédito por parte de todos aqueles que se cruzam com ela, em contraste com a sua determinação, certeza e descontração, está, absurdamente, genial.
Aos poucos, Harmon vai ganhando todos os campeonatos por onde passa e começa a ter alguma notoriedade perante os jornais locais. Acorda com a mãe que esta será a sua manager, recebendo uma comissão por campeonato ganho.
Também o telespectador ouve cada vez mais expressões como peão, rainha, cavalo, e mesmo não percebendo absolutamente nada sobre o assunto, constata que a história é, de facto, viciante, pois consegue agarrar um público através de um enredo forte, mas sobre um tema que poucos dominam.
Beth vive, unicamente, para o xadrez. A sua vida é direcionada para os campeonatos, para a vontade de aprender mais e por detetar falhas nos seus jogos e nos jogos dos seus adversários. Com uma postura e um olhar impenetráveis, é com dureza que Beth os vence, sempre com uma posição típica do queixo a descansar por cima das mãos cruzadas e de olhar fixo no seu oponente.
Harmon está a competir na cidade do México quando perde. A sua revolta é enorme, e o telespectador percebe o quão frustrada ela fica quando não consegue ganhar. Vimos uma cena em que ela está a explicar à mãe, deitada na cama, como perdeu e que jogadas fez, quando percebemos que esta está morta. Alma havia já dado alguns sinais de doença por abuso de álcool, e acaba por falecer deixando Beth sozinha.
De volta ao Kentucky, sua cidade natal, Beth reata o contacto com um antigo adversário, Benny Watts, interpretado por Thomas Brodie-Sangster, que se oferece para ajudá-la a aperfeiçoar o seu jogo para o torneio nacional. Depois de praticar com Benny em Nova Iorque, Beth ruma a Paris para a sua desforra com Borgov (Mercin Doroncincki), campeão mundial e o maior adversário de Beth, que tem como objetivo vencê-lo. Porém, após uma noite de excessos, e consequente perda, Beth entra numa espiral de autodestruição.
Desmotivada e sem dinheiro, Beth recebe a visita de Jolene (Moses Ingram), sua colega de orfanato e a única com quem estabeleceu algum tipo de relação. Esta vem informá-la sobre a morte de Mr. Shaibel e partem juntas para o funeral.
De novo no orfanato, Beth não resiste a visitar a cave onde tudo começou, e aí encontra uma parede com os recortes de todos os artigos que saíram nos jornais sobre si, e uma fotografia tirada quando ainda era criança juntamente com Mr. Shaibel. Beth volta ao carro de Jolene e, pela primeira vez, vimo-la chorar. Este choque parece ter servido de abanão para Beth que decide ir ao campeonato mundial na Rússia para enfrentar Borgov.
Beth apresenta-se agora com uma elegância irrepreensível, dona de um olhar penetrante e confiante. Ainda assim, uma mulher entre homens, num jogo que seria deles. O campeonato inicia-se e vimos Beth a sair vencedora de todos os jogos, e a ganhar, de vitória em vitória, mais fãs.
O jogo com Borgov acontece, e no meio de uma ansiedade palpável por parte dos dois, Borgov acaba por pedir um adiamento, deixando o telespetador angustiado e com a certeza de que este se sente ameaçado, pois de outra forma não o faria.
Ao dirigir-se à saída, Beth reencontra um velho adversário que se tornara amigo, e também o seu amor platónico: Townes, interpretado por Jacob Fortune-Lloyd. Este acompanha-a ao hotel e decide ficar para ajudá-la na estratégia contra Borgov. Nesse momento Beth recebe um telefonema de Watts que está em Nova Iorque juntamente com Beltik e os adversários de Beth que acabaram por se tornar amigos. Cada um tinha delineada uma estratégia para ela, mediante as possíveis jogadas de Borgov.
O jogo reinicia e sente-se, novamente, a ansiedade e a inquietação no ar. Ouvem-se os relatos do jogo, dentro e fora da sala. As jogadas continuam até ao momento em que Borgov sorri, ao que Beth responde, também, com um sorriso, enquanto este lhe entrega uma das suas peças ao apertar-lhe a mão. A cena passa para os amigos que se encontram em Nova Iorque onde Watts está de telefone na mão e grita: “Ela ganhou”.
“Gambito de Dama” não é só uma história sobre o mundo do xadrez e é, possivelmente por isso, que se tornou um sucesso tão grande. O xadrez é aqui uma metáfora para a concretização dos nossos sonhos. Para acreditarmos em nós, mais do que em qualquer outra coisa, é uma história de superação, de resiliência, de amor, de amizade. É o exemplo que nem sempre o caminho é fácil, embora a maioria das dificuldades seja imposta ou causada por nós. É sobre a emancipação da mulher. É perceber que nada no mundo é mais forte do que a nossa vontade de vencer. É saber que não interessa de onde vimos, mas sim para onde queremos ir. É, segundo a crítica “uma história de um mundo que por vezes se sente impenetrável e que, aqui, é contada através dos olhos de um prodígio que abraça a sua genialidade, mas que é tão humana quanto qualquer outra pessoa”.
Personagem preferido: Beth Harmon. Não há hipótese de ser analisado de outra forma. O modo como encarna este personagem, os tiques, o discurso ponderado, a falta de empatia com a maioria das pessoas, o não-sorriso estão, maravilhosamente, geniais.
Episódio preferido: 7 — “Fim de jogo”. Só quem tem de lutar muito por aquilo que deseja e acredita, quando não tem os meios para o fazer, é que compreende como é doce e reconfortante a sensação de ganhar. De ser reconhecido. De conseguir.