Venho falar-vos da última parte do “Outro lado da moeda”, aquela moeda que muitos de nós ignoramos. Já vos falei do “Mário” e do “Pedro” e agora vou-vos falar do “João”.
O dia do “João”, começa sempre um pouco antes das 8h da manhã e faz a formatura diária antes do início de cada turno. Acabada a formatura, “João” segue para o posto que lhe foi previamente definido, seja dentro dos pavilhões, portarias, diligências, a rendições hospitalares civis. Desta vez ficou no pavilhão. Inicia a abertura das celas dos reclusos com a contagem, para se poder confirmar se estão todos presentes” ou se existe alguma ausência e anomalia”. Após a contagem, efetua-se o controle de refeitórios e encaminha-se os reclusos para as atividades existentes no EP. Falamos de atividades como, oficinas, atividades escolares ou visitas de familiares, advogados ou outras entidades.
Por volta das 12h, todos os reclusos têm de estar presentes nas respetivas alas, ou se existir uma ausência, esta ser devidamente justificada. A contagem é feita novamente e segue-se o controlo das refeições dos reclusos. Após tudo isto, o processo efetuado no período da manhã, repete-se. Todo este processo iria ser repetido por volta das 17:30, em que os reclusos regressavam das atividades e voltava-se a repetir o processo da hora de almoço. Contudo, este processo acaba por interferir com o termo do turno das 16h, em que inicialmente se fazia o acompanhamento do recluso durante todo o dia, mas agora com o atual horário e com a rendição, acaba por se extinguir um acompanhamento dos reclusos às 16h. Durante este período, chamado “vazio”, “João” acredita existir uma liberdade em demasia que é dada aos reclusos, que acabam por gerir muitos dos negócios ilícitos existentes na prisão. Ao longo destas rotinas todas, o horário estipulado para os guardas, não pode ultrapassar uma prestação de serviço superior a 5 horas sem um intervalo, mas como é obvio, o mesmo não acontece. A saída dos turnos não é de todo respeitada, e isso acontece quando por exemplo o mesmo se encontra em rendição num hospital, em instituições ou organismos em que os horários é para lá das 16h, sendo o guarda “obrigado” a manter a rendição ultrapassando muitas vezes o seu horário de saída.
Para além destas funções todas impostas ao guardas prisionais num dia normal de trabalho, os mesmos são ainda obrigados a efetuar as “buscas” nos estabelecimentos prisionais.
Existem dois tipos de “buscas”, as chamadas anuais e as inopinadas.
As “buscas” anuais contam apenas para estatística, pois são programadas pela altura do final do ano e servem para, segundo “João”, “manter o ficheiro Excel do corrente ano bonitinho com trabalho efetuado.” Todos estão informados acerca destas “buscas” incluindo os próprios reclusos, portanto, os resultados obtidos, não são os reais. Estas podem corresponder às celas todas de uma ALA ou no caso de prisões mais pequenas, serem a totalidade.
Depois existem as “buscas” inopinadas durante o ano, que são as realizadas de forma surpresa, apanhando os reclusos desprevenidos. Por norma, estas “buscas” acontecem quando existe a desconfiança de algo ilícito, ou por situações que possam ocorrer durante o dia na prisão e que leva a que seja feita essa “busca”. São as que produzem os valores reais do que existe numa prisão, pois os reclusos não têm tempo de desfazer-se de algo ilícito que possam ter. Estas “buscas” inopinadas, são diretas, objetivas e direcionadas individualmente, com um propósito pré-definido.
“Ninguém gosta de ser contrariado e os reclusos não são exceção, com a ressalva que tem de ser dada à constante violação de normas e regras, violações estas, fáceis de transpor, que os levou muito dos casos à reclusão. E é nesse medir de forças que acontecem as agressões ao corpo da guarda prisional”. Estas palavras são de “João”, que todos os dias lida com a agressividade. Agressividade essa que pode advir, de uma “busca” inopinada, de algo recusado pelos guardas por ter indícios ilegais, ou até por pedidos ou solicitações em que o sistema não consegue dar resposta. Segundo “João”, dentro de um estabelecimento prisional só existem duas formas de respeito: ou por medo ou por satisfação das pretensões, sejam elas, legitimas ou ilegítimas.
Mas não é só a agressividade física que os guardas prisionais estão sujeitos. Todos sofrem uma enorme pressão psicológica, seja por parte dos reclusos, mas também por parte das direções e chefias. “João” diz que, durante a formação são informados desta pressão psicológica que vão sentir por parte dos reclusos, mas nunca informam da pressão psicológica por parte das chefias e direções, que muitas das vezes são as mais difíceis de suportar. Para estas chefias e direções, o dia na prisão tem de correr sem sobressaltos, ou incidentes e caso algo aconteça, vai sempre existir um guarda prisional que irá acarretar com as culpas, nunca os superiores.
Esta situação, acaba por desencadear outros problemas, os familiares e sociais, entre outros. “João” sente a necessidade de dar relevo à pressão que é exercida e com enorme importância na vida social, familiar incluindo a própria saúde e tudo o que isso acarreta na vida destes guardas, que poucas ou nenhuma das vezes são reconhecidas. Para além desta agressividade e pressão que os guardas sentem, os mesmos ainda veem os seus familiares a serem “arrastados” para o centro de tudo isto. Muitas das vezes os reclusos ou familiares a quem não agrada a postura ou desempenho do guarda no cumprimento de regras e leis estabelecidas, ameaçam e chegam a existir confrontos diretos externos ao EP.
Muitas vezes, esses confrontos ou ameaças envolvem filhos, familiares ou amigos e “não são assim tão poucas as vezes que são abordados por ex-reclusos ou familiares dos mesmos na vida particular de quem convive com o guarda prisional, o que leva a muitas vezes a limitar os movimentos que são legítimos a qualquer cidadão, segundo indica “João”.
Para além de todo este panorama, existe ainda a questão familiar/profissional. Como conseguem estes profissionais, exercerem mais de 12h de turnos e ainda assim conseguirem estar com os familiares? Com as esposas, namoradas, filhos? “João”, tal todos os restantes guardas que me escreveram, afirma que não é de todo fácil fazer esta gestão. O facto de fazerem turnos, acabam por perder datas importantes, como aniversários, feriados, natal, ano novo, o aniversario do filho ou até mesmo o primeiro dia de aulas. O regulamento do horário do corpo da guarda prisional indica que “….O Serviço do Corpo Da Guarda Prisional, é considerado permanente e obrigatório, considerando-se dias de trabalho, todos os dias da semana….”Horário este que afasta o guarda prisional da família e que todos olham como se não importasse e em que a direção/chefia pouco se preocupa. “João” está a fazer dois anos desta profissão e não tem, tal como todos os guardas, direito sequer a um fim-se-semana completo, situação esta que não parece incomodar minimamente a ministra da Justiça.
A maior parte dos candidatos a esta profissão, são do Norte e centro do país e acabam muitas vezes por serem colocados na zona de Lisboa. Deixam as famílias, mas acabam sempre por ficar com a “esperança de irem para mais próximo de casa, esperança essa que fica suspensa, cinco, dez, quinze anos e sem saber quando irá acontecer, vivendo esse período em constantes viagens, muitas das vezes de um dia, ” conforme “desabafa “João”.
“A seguir ao turno de serviço, (por vezes com um acumular de trocas), acaba sempre seguido de outro, o da viagem e é muito tempo afastado do seio familiar, sempre com a sensação de que nunca estamos presentes nos problemas que acabam sempre por sobrar para a restante família. Para quem tem filhos, passamos a maior parte do tempo de crescimento em constante ausência e quando acabamos por ter a oportunidade de ir para perto de casa, por vezes coincide com a saída dos filhos para a universidade, longe de casa e assim perdemos mais uma oportunidade. É uma vida de ausência na esperança de sobreviver e dar o melhor aos nossos entes”.
Estas palavras são do “João” e eu senti a necessidade de transcrever cada palavra dele, para que todos nós vejamos como lidam com a questão família/trabalho.
Estes guardas prisionais, sentem de forma mais intensa o que é viver em “constante perigo”, o que é chegar a casa e tentar abstrair-se do trabalho. “João” diz que existem sempre episódios que marcam, desde a “morte de um recluso por outro pela recusa de dar um cigarro ou outro recluso ter cortado a orelha de outro com uma dentada”. Os filhos dos reclusos são também usados para servirem de transporte de droga para o interior da prisão, situação esta que marca este guarda prisional. “João”, numa das vezes que esteve de serviço no pátio, ouviu um relato de um recluso que lhe ficou na memória:” Sabe Sr. guarda, fui preso por transportar droga e o meu trabalho era pegar nela no sul de Espanha ( vinda de Marrocos ) e entregar na fronteira de Portugal, só sabia este processo, não sabia nem fazia mais nada. Desde que entrei aqui, já sei o processo todo, desde de onde se vai buscar a droga a Marrocos, até onde se entrega em Portugal. Aprendi aqui e agora sei tudo”.
Isto acontece porque existe uma mistura de reclusos, primários e preventivos, a condenados e reincidentes, de novos a velhos. É tudo à mistura e um “safe-se quem poder”. Continua-se a falar de reinserção e da falta da mesma, mas não é possível existir essa reinserção, quando não existe primeiramente uma diferenciação entre reclusos primários e preventivos. O sistema acaba sempre por favorecer o reincidente, nem que seja pelo conhecimento deste do funcionamento do sistema.
À pergunta porque quis ser guarda prisional, “João”, diz que nunca teve nada que o ligasse à farda. Foi, como para todos os restantes guardas prisionais com quem falei, uma oportunidade que surgiu na vida da qual aproveitaram. “João” aproveitou essa oportunidade, mas classifica-a como um “tiro no escuro”, sem saber o que o esperava, mas sempre com a esperança de dar um rumo à vida. Nesse período, este jovem, lembra- se de ter imposto a si mesmo, que ou arranjava algo estável ou partiria para foro do país. Acabou por ingressar o corpo da guarda prisional e foi ficando até aos dias de hoje, em que é mais um guarda como tantos outros, a quem lhes é exigido demasiado, mas pouco lhes é reconhecido. O atual Diretor Geral de Reinserção e Serviços Prisionais em 11-VI-2019 afirma isso mesmo” …Guarda prisional é das profissões mais difíceis que a República Portuguesa pede aos “seus filhos” e frequentemente das mais incompreendidas”.
O que significa para “João” ser guarda prisional, é quase como ser “posto de lado”. Ser guarda prisional é lidar com pessoas que não estão de todo enquadradas na nossa sociedade, que cometeram crimes dos mais variados e estão a cumprir pena. A palavra prisão nas nossas mentes, remete-nos para “um enorme aglomerado de pessoas que violaram regras da sociedade, pessoas de várias classes sociais, com mais ou menos valores, mas em que o salto do cumprir para não cumprir é muito curto e facilmente o trespassam”. Um guarda prisional é “obrigado” a lidar com diariamente, com angústias, problemas, medos, preocupações das pessoas que estão privadas de liberdade e sempre com a obrigação de ignorar os próprios sentimentos. É isto que é exigido por parte das chefias/direções, sem falhas.
Para “João”, ser guarda prisional é “representar o Estado nas funções que lhe são atribuídas, com o objetivo de manter o controle e a ordem dos estabelecimentos prisionais, de forma e em conjunto para que as outras entidades regenerem o individuo e o reentreguem na sociedade, ciente do papel que terá na comunidade e os limites que são impostos, não só ao recluso como a todos, para que se possa viver em harmonia no tempo que é atribuído”.
Falei-vos do “Mário”, do “Pedro” e do “João”, mas agora vou-vos falar do último testemunho desta reportagem. E porque deixei para último? Porque muitas das vezes, existe um estigma de que esta é apenas uma profissão de homens. Enganam-se. E a “Joana”, está aqui para vos elucidar do que é ser mulher guarda prisional no meio de uma profissão maioritariamente masculina.
E se até aqui, todos com quem falei, escolheram a profissão “por oportunidade”, com “Joana” foi exatamente o contrário. Para esta guarda prisional, para além de ser uma forma de estar, é um sonho, porque “Joana” sempre quis ser guarda-prisional. Questiona se pode ser ridículo ser um sonho? A própria diz que talvez, mas foi aquilo que sempre quis fazer. “Joana” sente-se fascinada por querer saber e lidar com pessoas que se afastam da sociedade por um período de tempo com vista a reintegrar de novo na sociedade. Para “Joana” ser guarda prisional, é ser agente de segurança cuja missão é a reinserção de alguém que cumpre pena. Ao longo do cumprimento da pena, passa pelos guardas prisionais, garantir a segurança dos reclusos durante esse período tempo, no estabelecimento prisional. A vontade e a curiosidade de conhecer este “mundo escondido da sociedade em geral e a vontade de transmitir, à minha maneira, à população reclusão com quem lido, de que é possível ter uma vida digna através da disciplina e rigor, com controle e com poucas possibilidades económicas”. Estas foram as razões que levaram “Joana” a seguir a profissão de guarda prisional e a mesma afirma que o mais gratificante é quando se cruza na rua com algumas dessas mulheres que estiveram presas e lhe agradecem o que “fez por elas” , em que estão reintegradas na sociedade, estabilizadas, a trabalhar e com vontade de deixar para trás o mundo do crime. É nestas situações que a profissão faz mais sentido para “Joana”.
Ser mulher e guarda prisional, é, segundo “Joana”, lidar com uma vertente mais sensível do mundo da reclusão. “As mulheres em geral são mais reivindicativas, ampliam os problemas familiares e como tal, todos os dias após a abertura das celas, todas estas mulheres têm milhentos problemas para resolver e como é normal em meio prisional, todos os problemas e emoções intensificam-se e acabam por parecer graves, grandes e complicados. Em suma, ser guarda prisional e ainda ser mulher nesta profissão, é ingrato, porque espera-se por parte da sociedade, uma mulher que por is só seja carinhosa, afetuosa e sensível.” Estas são as palavras de “Joana” que afirma, que devido a esta dinâmica, cria ao profissionais da guarda prisional, mecanismos de defesa que acaba, por moldar as personalidades, tornando-os mais insensíveis e frios aos problemas dos outros, o que acaba sempre por se refletir na vida particular.
“Joana” não sente a mesma dificuldade que muitos colegas de trabalho sentem, em gerir esta profissão com a vida particular. “Joana” não é casada e a mesma afirma que apesar de viver a mais de 150km da terra natal, consegue com facilidade conciliar as folgas com as visitas aos familiares. Assume, no entanto, que após um turno noturno, os níveis de paciência estão muito mais em baixo e torna-se mais difícil estar-se a 100% para a vida familiar com a “devida animosidade”.
“Joana” trabalha num EP de mulheres reclusas e faz exatamente o mesmo que os colegas nos restantes estabelecimentos prisionais. O mesmo não aconteceria se “Joana” estivesse num EP de homens. Não teria contacto direto com os reclusos, mas sim com os familiares.
Contudo, apesar de trabalhar num EP feminino, “Joana” também tem relatos de situações que a marcaram. O primeiro relato foi quando foi mordida por uma reclusa. “Joana” diz que nesse dia aquela mulher pareceu-lhe enorme e teve medo. “Confesso que durante algum tempo foi-me penoso desempenhar funções pois não me sentia confiante. Demorei algum tempo a ultrapassar esse medo” diz “Joana”. Outros relatos, por exemplo, quando uma reclusa põe fim à própria vida, quando têm um familiar direto a morrer e nada podem fazer, as guardas prisionais sentem essa sensação de impotência e de dor daquelas mulheres.
Estas guardas prisionais sentem os mais variados perigos. Desde a agressões por parte das reclusas, visitantes dos mesmos e “claro, nas saídas ao exterior. Muitas vezes, essas agressões por parte dos familiares das reclusas, acontecem por estes não entenderem que estão apenas a fazer o trabalho que exigem aos guardas, respeitante à pessoa que custodiam. No entanto existem outros perigos que não estão visíveis. “Joana” considera estes riscos mais perigosos e menos explícitos, que são os prejudiciais para a saúde do guarda prisional. Falamos de perturbações do sono, perigo de contágio de doenças infecto contagiosas e os comportamentos/mecanismos de defesa que vão adquirindo em virtude da função desempenhada. Os guardas prisionais estão também sujeitos a perturbações de personalidade e doenças mentais.
Esta é a história da “Joana”. Seguiu esta profissão, porque sempre foi um sonho. Gosta realmente do que faz. Deixei este testemunho para último, porque acho de louvar e dignificar, as mulheres que seguem esta profissão. Esta e qualquer outra profissão de risco.
Tentei através ao longo destas três partes, demonstrar uma realidade que nos é alheia. A mim era. Eu não conhecia de todo essa realidade. Ser jornalista para mim é isto, é poder contar histórias reais, de pessoas reais.
Quero agradecer a todos os intervenientes que me escreveram e pediram para eu escrever sobre o que eles vivem. E quero, obviamente, agradecer à pessoa que me deu a oportunidade de conhecer este mundo e de me ter deixado escrever o primeiro texto sobre esta profissão.
Um enorme Bem-Haja a todos!