O aqui sabe-me a pouco

Nalguma parte importante de mim ficou um buraco com a tua forma e cada dia encho-o com sonhos e possibilidades. Encho o vazio comigo mesmo, faço puzzles absurdos com peças que não encaixam mas que até se conseguem completar. Encho tanto, tanto até tapar, até eu transbordar de mim e sentir o que é estar vivo. Dolorosamente vivo. Gloriosamente vivo.

Chegar à Primavera depois de um Inverno eterno.

Um dia, no meio do caos, consegui agarrar a minha mão.

Quando o impensável acontece, de repente somos outro. Um estranho. Um estranho sozinho num lugar desconhecido. Um desfoque, uma miopia emocional ou cardíaca. Como se acordasse e nada estivesse certo, tudo fosse um monte de quase – a casa era quase aquela, as ruas estavam quase iguais, as cores e os cheiros quase certos –, e eu me visse ao espelho e descobrisse que era diferente da pessoa que sempre fui no reflexo dos teus olhos.

Até uma noite em que parecia estar a perder. O mau doía e o bom doía e eu só desejava anular tudo o que fosse sentir. Toquei numa parede que gritava

o aqui sabe-me a pouco

e senti uma saudade asfixiante dos lugares onde nunca estivera.

Dolorosamente vivo. Gloriosamente vivo.

Quando o impensável acontece, de repente temos a liberdade de ser o que quisermos. A liberdade de ir a qualquer lado – ou a todos – quando nos desviamos do caminho que seguíamos. Há tantas formas de ser. Não são mais nem menos, são outras. São pontes que faltavam construir e túneis que ainda queríamos atravessar, sempre com música nos pés.

O meu aqui sabia-me a pouco. Não. O meu aqui não me sabia a nada. Ou sabia-me a bílis, a insanidade, a fim. A caos. E no entanto, no meio desse caos, encontrei a minha mão e agarrei-a. Comecei a levantar-me e a ver menos desfocado, com menos dioptrias na minha miopia. Deixei de ser um estranho e passei a ser qualquer coisa de definitivo que estava em constante transição.

Nalguma parte importante de mim ficou um buraco com a tua forma. Talvez tenha sempre a tua forma e talvez não seja isso que realmente interesse. Continuo a encher os meus vazios. Há vidas para lá da vida. O mau dói e o bom dói, mas existe uma certa ternura na dor de sentir. Uma certa coragem em estar dolorosamente vivo, gloriosamente vivo.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

As novas famílias

Next Post

Ser paraplégico e praticar surf. Porque não?!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Don Juan DeMarco

… ou a história de como uma música quase estragou um filme. O filme é antigo, de 1994. Consegue ver-se pela…

Procura-me – Parte III

O corpo dorido não o deixou dormir o tempo que a sua cabeça exigia. Carlo G. adormeceu no carro à porta do…

Ladrões Com Muito Estilo

Três tubarões do cinema juntam-se num filme pouco convencional. Um grupo de idosos que decide assaltar um Banco.…