Cecília era trintona. Nem trintinha, com menos de 35 anos nem mulher madura. Era uma trintona de 39 anos e uma vida planificada pela família. Uma mulher tão submissa que se esquecia de viver. Sabia como obedecer mas não como não o fazer.
Era a filha perfeita que correspondeu às expectativas dos pais. Foi uma menina obediente, sem castigos nem repreensões e uma aluna bem aplicada. Vinha da escola, fazia os trabalhos de casa, ajudava a mãe nas tarefas e ouvia sempre o pai. Um modelo a seguir.
Foi crescendo dentro das regras que lhe tinham estabelecido. Acabou a escola, fez um curso profissional e procurou emprego. Nem foi preciso. O pai já tinha apalavrado o lugar, no escritório do amigo de longa data e Cecília, logo que terminou os estudos, começou a trabalhar. Não foi preciso nem currículo nem entrevistas. Assim, como um estalar dos dedos.
Nunca saiu com os amigos porque não os tinha. A mãe, que fazia que sim a tudo o que o pai dizia, nunca a deixou visitar ninguém. Para o pai ninguém era bom o suficiente para se dar com a sua menina. Ficou sempre com os pais. Dava-lhes todo o ordenado que recebia. Não precisava de dinheiro. Eles asseguravam-lhe tudo, as necessidades básicas e o restante que entendiam.
Cecília nunca usou calças. Isso era roupa para as malucas e ela era muito ajuizada. Usava sempre saias que nunca mostravam os joelhos. Pelo meio da canela, à boa maneira de solteirona ou freira reformada. Cecília era a luz dos olhos dos progenitores.
Olhava para a maquilhagem nas poucas revistas que entravam em casa. Não lhe era permitido usar aquelas garridices, as que as mulheres oferecidas colocavam para atrair e enlouquecer os homens. E cabeleireiro, só com a mãe e para cortar as pontas, que “o cabelo da minha Cilinha é tão bonito que não precisa de mais nada.”
No escritório era muda e cega. Os poucos que lhe ouviam a voz, acabavam por se afastar porque percebiam que estavam a ultrapassar um limite que até ali desconheciam. Cumprimentava com a cabeça e a expressão corporal era nula. Fazia o que lhe mandavam. Apenas cumpria a sua obrigação.
Quem a visse nunca entenderia como ela se sentia e a vida que tinha. Muito aprumada, roupas clássicas e rabonas, cabelo sempre apanhado num carrapito que se voltava a usar. As cores variavam entre o castanho e o cinzento e nem anéis nem brincos, que atraíam gente de má índole.
Um dia o pai disse-lhe que tinha que se casar. Recebeu a notícia sem emoção nem expressividade. Se o pai o dizia, tinha de o fazer. O futuro marido foi escolhido pelo pai. Olhou para ele. Era velho e desconchavado. Nem uma pontinha de interesse. Marcaram a data do casamento. Ficariam a viver ali em casa, onde o pai poderia controlar a situação.
A noite de núpcias foi decepcionante, tal como ela pensava. Não havia nem paixão nem amor. Somente uma função a cumprir. O casamento tinha de ser consumado. E foi. À bruta, sem vontade nem gosto. Tinha que ser. Ele não se incomodava e ela deixava.
A mãe queria ser avó e o pai fez questão de dizer que estava na hora. O marido voltou a aproximar-se dela. À terceira tentativa consegui o objectivo. Continuou a trabalhar até que um dia sentiu dores. Assustou-se. Nunca tinha sentido nada. Nada de coisa nenhuma. Gritou e foi para o hospital. Era um rapaz.
O pai ficou contente. Um homem, que devia continuar as tradições. Bebeu um copito de vinho do Porto. O marido sorriu de alívio. Já estava cumprida a sua missão. Refastelou-se no sofá e brindou com o sogro.
O bebé usou as roupas dela. Coisas modernas não prestam. São de má qualidade. As fraldas lavam-se à mão e a roupa não se estende de noite. Os banhos de lua fazem mal ao bebé, deixam-no doido, aluado. Ela seguiu estes ensinamentos sem pestanejar.
Voltou ao escritório. Colocou uma foto do filho, numa moldura, no lugar onde todos pudessem ver. Ninguém lhe perguntou nada. Somente um silêncio imenso. Era invisível mas o trabalho aparecia feito.
“E a menina? Não querem uma filha?” O marido, contrafeito, deitou-se com a mulher. Bastou uma noite e tudo se compôs. Na ecografia viram que era uma rapariga saudável e forte. Nasceu de cesariana. Era rebelde. Cecília sentiu-se mal e fraca. Ninguém a apoiou. As mulheres têm que aguentar o sofrimento.
Cuidou dos filhos com desvelo, sem nunca mostrar que os amava. Não sabia. Os pais nunca lhe ensinaram. Os filhos nunca sentiram. Estavam a crescer numa casa com pai, mãe, avó e avô mas onde o amor se ausentava. Não havia mais ninguém nem espaço para sentir. Estava lotado.
Voltou a trabalhar. Colocou a foto da filha numa moldura em cima da sua secretária. Quiseram fazer-lhe perguntas. Tiveram receio dos limites. Sorriam fracamente para Cecília. “Dois filhos é bom”, mas nem um sorriso.
Um dia não chegou a casa à hora do costume. Saiu do escritório, depois da mesa ficar toda arrumada. “Até amanhã. Até amanhã.” Atravessou a rua e entrou na estação de metro. Destino: Gare do Oriente. Aproximou-se do comboio. Saltou para a linha. Viajou até outras paragens que nunca havia de conhecer.
Cecília era uma trintona. Nem trintinha nem mais que isso, sem ser madura. Apenas uma mulher, entre tantas, apagada, sem cor nem amor. Na notícia do jornal escreveram: “Mulher suicida para linha do metro durante 3 horas.”. Finalmente alguém tinha reparado nela.