Relações de Porcelana

Quando o olhar crítico afecta a sensibilidade dos demais, sabes que a sociedade está em autodestruição. Ninguém consegue ouvir nada que não seja o seu próprio ego, nem lidar com alguém que seja mais forte ou, muitas vezes, diferente de si próprio.

Se há algo inesperado que acontece na vida (e todos nós sabemos que o inesperado está para a vida adulta como a fantasia está para a infância), são circuitos que quase pegam fogo devido à falta de capacidade de lidar com o outro. Se durante o espelhismo, há uma mísera ovelha negra que verbaliza algo que não estava no teu guião, rapidamente a imagem sobre essa pessoa se transforma num cinzento ameaçador que merece ser corrigido e apertado para não se evidenciar (sobre ti).

Aqui não está em causa se a opinião contrária à tua é ou não válida, se tem ou não fundamento. Contudo, pelo simples facto de ser contrária ao que o umbiguismo reflecte, então, é alvo de dedo apontado. Quem tem voz própria passa a vida a pisar ovos. E se não passa o tempo todo a medir as suas palavras, passa então o tempo todo a lidar com consequências e retaliações.

Frases como: “És muito chata” ou “Tem lá calma” são arma rápida para aguentar cavalos, porque emitiste uma opinião sobre determinado assunto que ninguém te perguntou e, se perguntou, não era essa a resposta certa. Perdes o jogo, perdes os créditos, perdes posição e perdes também a vontade de lidar com gente pequena num mundo destruído.

Porcelanas e cristais cheios de fissuras com a tinta em permanente estalo VS gente bruta que não mede as palavras que dilaceram e põem em risco os seus pequenos castelos.

Assim vai o mundo. Especialmente o corporativo. O profissionalismo é pouco, a organização é escassa e o medo impera sobre qualquer relação humana. Relações essas que nunca se chegam a humanizar, mesmo que com todos a socializar em constantes teambuildings onde que se avaliam mutuamente em contextos desproporcionais. Geralmente perde o mais forte, porque está isolado e apontado quase como devedor de ’tá-se bem’ quando efectivamente não está nada tudo bem. Mas falaste. E não o poderias ter feito independentemente do teu tom ou do teu conteúdo.

Nunca, jamais, avalies um castelo pela aparência sem que primeiro analises a sua estrutura social e humana.

Uma sociedade que não tem capacidade de crítica ou de autocrítica é uma sociedade frágil. Assente em fundações de areia sem pilares estruturais que a segure sempre que o vento não sopre de feição. Se não há abertura para, uma vez que seja, desabafares no meio dos teus, então estás a maquilhar cadáveres sobre nevoeiro cerrado. Nem vês o que estás a fazer, nem te dás espaço para melhorar, visto que a tua verdade absoluta está acima de qualquer apontamento que o outro possa ter para te dar.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico

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Comments 4
  1. O espaço crítico é importante para o crescimento… Acho que estamos numa fase do 8 ou 80, que pensa e não é nem 8 nem 80 está frito.

  2. Muito assertiva. 👏 Verbalizaste o que muitas vezes sinto no dia a dia, e não apenas a nível profissional, mas também, em contextos familiares e de amizade. Não é fácil ter-se opinião própria…

  3. Muito interessante. Quando se trata de egos, o coletivo que deveria sobrepor-se ao indivíduo não existe. É neste mar de interesses que temos de saber gerir as nossas razões na mistura com as emoções.

  4. A mãe da opinião está a dar voltas no tumulo nestes tempos que correm. Quando uma pessoa não se limita a ser “só mais um” quebra barreiras que muitos não têm capacidade para chegar perto sequer. Texto poderosissimo! Ah grande capitã! Mantém-te sempre na equipa dos mais fortes que é assim feita a tua essência.

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