Moçambique, SIDA e tradições culturais

Desde o início da sua descoberta no início dos anos 80, estima-se que a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) tenha causado cerca de 65 milhões de infecções e 39 milhões de mortes no mundo todo.

Até aos dias actuais, esta doença continua a ser um grande desafio para a humanidade e é a África Subsariana a região mais afectada do mundo, estando Moçambique entre os dez países com maior número de pessoas infectadas.

Ao mesmo tempo que Moçambique se localiza geograficamente na região do mundo mais atingida pela doença, países vizinhos como África do Sul e Suazilândia são os países com maior prevalência de SIDA no mundo.

Em Moçambique, estima-se que, em 2013, o número de pessoas com infecção pelo HIV foi de 1,6 milhões e que tenham ocorrido, nesse mesmo ano, aproximadamente 82 mil mortes por causa do HIV. No total esta doença atinge o 11,5% dos moçambicanos, porém, a prevalência varia segundo a região, atingindo 39,9% da população, como é o caso da região de Manhiça, e a cerca de 17% da população, em Maputo.

Dado a que o vírus afecta principalmente o sistema imunológico (de defesa) do corpo humano, esta doença vem sempre acompanhada de muitas outras doenças como a tuberculose, a pneumonia e o linfoma. Estima-se que em Moçambique estas doenças relacionadas com a SIDA sejam causadoras da morte de cerca de 225 pessoas/dia. Só no Hospital Central de Maputo, mais de 3 mil pessoas morrem por ano vítimas de doenças associadas à SIDA.

MG_mocambiquesidaetradicoesculturais_1Moçambique, como bom país africano que é, é um país com profundas e fortes raízes culturais. Imaginemos. Se formos um moçambicano com SIDA e vivermos numa região rural, o mais provável é que, quando nos sintamos mal, visitemos primeiro um curandeiro tradicional. Moçambique tem unicamente cerca de 600 médicos para todo o país e mais de 25.000 curandeiros. Estima-se que 70% da população moçambicana recorra à medicina tradicional para tratar ou atenuar o impacto negativo do HIV. Somente quando o quadro da doença já está muito avançado, é que as pessoas recorrem aos hospitais e à medicina convencional.

Num estudo realizado numa região rural com pessoas que padeciam de HIV de sintomatologia evidente e que tinham ido aos curandeiros, mostrou-se que o diagnóstico feito pelos curandeiros era que esta doença era provocada por maldições (56%), causas biológicas (15%) e por espíritos em fúria (10%). Neste mesmo estudo, 55% destas pessoas com SIDA receberam um tratamento de ervas via subcutânea, ou seja, os curandeiros realizaram cortes nas peles dos pacientes com lâminas de barbear e colocaram ervas nestas feridas.

Outro factor cultural que contribui no país para a propagação da SIDA é a tradição conhecida como kutchinga (ou kapitakufa) e que é realizada principalmente nas regiões rurais. Este costume é realizado para purificar às viúvas e afastar azares. Esta tradição obriga as viúvas a terem relações sexuais desprotegidas com um parente do defunto. Contudo, os governos, juntamente com a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique, estão a tentar abolir esta prática por causa das altas incidências de HIV no país. Para isto, são previstas multas para curandeiros que persistirem na prática do ritual e, se o curandeiro reincidir, poderá ser interditado de exercer a profissão. Toda esta situação mostra a importância de implicar os curandeiros tradicionais na luta contra a SIDA e tal coisa tem se feito em outros países africanos, onde se tenta integrar a medicinal tradicional com a convencional.

Além disso, em Moçambique, a doença tem um perfil migratório, pois há muitos moçambicanos que trabalham na África do Sul, um dos países com maior taxa de HIV do mundo. Os trabalhadores moçambicanos contraem a doença no país vizinho e, ao voltarem às suas casas em Moçambique, acabam por infectar as suas mulheres. E vale a pena referir que neste país é muito comum a poligamia, especialmente nas áreas rurais, pelo que um marido acaba por infectar mais de uma mulher.

Contudo, é necessário chamar a atenção de que, apesar da SIDA ser uma doença tão presente no dia a dia moçambicano, há um grande desconhecimento da doença por parte da população, já para não falar da discriminação que sofrem as pessoas infectadas. Muitas pessoas, quando tratadas acabam por melhorar e se sentir melhor, e, mesmo depois de ouvirem as indicações dadas pelos médicos, voltam a ter relações sexuais sem preservativo, por pensarem já estarem curadas.

Um outro grande problema que existe em Moçambique, devido à doença, é a quantidade de crianças órfãs cujos pais acabaram por falecer pelo HIV. Estas crianças acabam por cair nos cuidados de algum parente, ou acabam mesmo por ser abandonadas. Estima-se que em todo o país haja cerca de 810 mil crianças órfãs.

Como resposta a esta situação tão problemática, o governo de Moçambique juntamente com parecerias internacionais tem aplicado diversos programas de luta contra a SIDA e ampliou o uso de medicamentos antirretrovirais gratuitos, alcançando a cobertura em 765 mil pessoas. Espera-se alargar a disponibilidade destes medicamentos de 40% em 2014 para uma meta de 53% em 2016. No entanto, há muito a ser feito, o acesso aos cuidados necessários e o controlo da doença é complicado, por causa da pobreza e do frágil sistema de saúde, num contexto de fortes tradições culturais.

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