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Jogar a dinheiro

Não tardará muito, teremos as caixas de correio inundadas de catálogos infantis, promovidos por empresas que se esquecem dos resíduos ecológicos gerados. As televisões, as revistas, tudo o que possa ser veículo de sugestão, serão usadas para deslumbrar os pequenos. Os consumidores são os pais, mas os influenciadores são claramente as crianças.  É sobre elas, e no emotivo conceito que persegue os pais, de que nada falte aos filhos, e se possível, que os presenteemos com tudo o que lhes faz brilhar os olhos, que estes criadores de sonhos, vulgo manipuladores de vontades, trabalham arduamente.

Sonhar é fácil. Recordo miúdos que sinalizavam o catálogo, boneco sim, puzzle sim, carro sim, livro sim, com a eficácia de quem sublinha tudo o que lê. Objectivos: o catálogo completo, que é como diz, o mundo. Os pais, com mais ou menos posses, lá se vão esforçando, entre o desejo e a realidade monetária, para satisfazer as vontades infantis, imensas, infinito e mais além. Ora, não pode ser.

Em idades menores, a existência de um Pai Natal generoso, liberta nas crianças o instinto dos pedidos. Independentemente da situação familiar, as crianças excedem-se em consumismos extremados mas, quem os pode censurar? O pai está desempregado? A mãe ganha mal? O que é que isso tem a ver com o caso? Não é o Pai Natal que dá? Há uma completa desresponsabilização do excesso, porque é uma entidade terceira que dá resposta a esta questão. Não sendo o Pai Natal, será o Menino Jesus. Quando era criança, ficava extremamente confusa com a complexa distribuição natalícia: o Pai Natal recebia as cartas, produzia e entregava as prendas, o Menino Jesus era o ofertor, mas depois eu tinha que agradecer à tia. Ter vindo parar à logística na minha vida profissional deve ser um facto que Freud explica, com certeza.   Por isso, mesmo que a criança tenha alguma percepção – e serão poucas a fazê-lo –  das dificuldades familiares, sentir-se-á sempre à rédea solta para embarcar no sonho ilimitado, afinal há figuras externas que patrocinam o Natal.

As crianças crescem e vão percebendo que afinal são os pais que providenciam os gastos. No entanto, até que ponto poderemos nós, pais e adultos, exigir deles uma compreensão dos factos, da razão porque não lhes podemos comprar a última consola ou o último telemóvel? Ou se, mesmo podendo, optamos por tentar passar-lhes conceitos como poupança, equilíbrio ou segurança? Ou mesmo valorização do esforço tido para obter determinado bem?  A maioria dos miúdos não tem noção de quanto ganham efectivamente os pais, nem têm que o saber. Muitas vezes apreendem, de forma externa e muitas vezes incorrecta, sobre os rendimentos de cada família pelos bens que possuem ou aparentam possuir, ou pelo nível de vida que têm, que férias fazem ou que locais frequentam. Ora, sabemos nós, adultos, que muitas vezes as aparências iludem, e que os miúdos se comparam em coisas tão insignificantes como a marca da roupa que usam, ou a dos ténis. Eles não sabem avaliar a capacidade financeira parental, mas deveriam ter uma ideia do razoável. Só assim poupariam os pais, sobretudo aqueles que menos condições têm, à dor de não poder ofertar aquela prenda grandiosa de preço astronómico que não se evitam de pedir.

E é aí que entramos nós, os adultos.

Se eu nunca falei ao meu filho, por exemplo, das despesas da casa (banco, condomínio, obras, manutenção, luz, agua, gás), da alimentação, dos gastos do carro (eventual crédito, revisões, pneus e combustível), impostos e restantes despesas, não posso esperar que ele consiga perceber a organização da receita doméstica. Ou mesmo que o lazer vem depois nas prioridades, e condicionado ao que sobra das despesas básicas. De facto, se não lhe explicar que há despesas, ele poderá pensar que tudo o que ganho poderá ser gasto no lazer. E isso é dar mais uma vez azo à evasão total. É difícil encontrar um ponto de equilíbrio nestas questões. Eu vivi nos anos 80, com crises, subidas de preços frequentes, noticiados na televisão, e o caso da Lisnave que atingiu pessoas próximas da família. Sempre achei que era mais pobre do que efectivamente era, chegando a reunir bonecos e livros para vender no sentido de ajudar a família, o que era perfeitamente descabido e desnecessário. Um sofrimento atroz. Mais uma vez, vir para a área de gestão também é um facto que talvez Freud saiba explicar.

Conversar, apelando à racionalidade, nem sempre é fácil ou eficaz. Porque os miúdos se focam em coisas que os amigos têm e se sentem desintegrados, desprezando a racionalidade, ou meramente porque lhes falta experiência no contacto com o dinheiro. Então, partimos para a acção. Aprender, fazendo, não é assim que se diz? Foi a forma que encontrei para levar 3 crianças a perceber esse conceito. Fomos de férias e, antecipando os pedidos intermináveis de gelados, bolas de Berlim, carroceis, recordações para trazer, pulseiras, fios e afins, atribui € 20 a cada uma das crianças e foi-lhes dito que tudo o que excedesse o básico seria pago por eles com esse dinheiro.

Quem acha que percebe muito de economia porque segue a bolsa ou aprendeu de forma cuspida algumas expressões como ROI, NIB, Pareto ou Fundo de maneio, deveria assistir a estas mentes infantis a organizar o dinheiro e a aprender conceitos básicos. Isto sim, foi uma verdadeira aula de economia. Ao longo de 15 dias aprenderam coisas sobre a gestão do dinheiro que deveriam ser obvias, mas não lhes eram presentes, pela juventude:

  • a receita é limitada, e convêm que dure, pelo menos, até ao último dia das férias, idealmente que sobre,
  •  pela sua limitação, implica escolhas: se comem 5 gelados, podem não ter dinheiro para chocolates,
  •  se pretendem adquirir algo de valor elevado no último dia, como fazer uma tatoo de henna, têm que provisionar o valor e manter-se controlados para não o gastar e não por em causa o objectivo
  • há custos que podem partilhar entre eles, como as prendas para os avós
  •  convém reservar algum dinheiro para imprevistos…ainda que seja qualquer coisa básica, como substituir uma bola que se perdeu

Foi possível identificar os perfis de cada um deles: poupadores, equilibrados ou gastadores.

Assistir às conversas deles foi muito produtivo, cada um com a sua estratégia. Obviamente que foi uma experiência parcial, porque de facto não tinham nada essencial para salvaguardar, apenas optaram entre lazeres diversos. Mas deu-lhes uma ideia do jogo que os adultos fazem mensalmente, que o lençol não estica.

Ainda assim ripostaram: mas tu ganhas mais, não tens esta limitação tão curta, ao que prontamente respondi: pagas casa? Comida? Combustível? Queres mesmo falar sobre isso?  Agora sim, já posso exigir deles alguma racionalidade, agora que sabem que o céu não é o limite.

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