Manicure

“Olá, avó.” Dás-lhe um beijo na testa.

“Ah, voltaste!” diz ela, sem sorrir. Penso que já não te reconhece bem, que já só vive no passado. Sentes um aperto enorme no peito ao ver um brilho diferente daquele que sempre lhe reconheceste nos olhos. Um brilho nublado, um brilho ao longe. Como se não visse nem ouvisse nem estivesse cá.

“Já te disse que não te quero mais ver!” grita-te, de repente.

Todos olham para ti. Todos se agitam para tentar ver o que se passa.

“Vai-te embora, Manicure! Vai-te embora! Não te quero na minha vida!”

Levantas-te e olhas para a enfermeira, sem saber o que fazer. Ela abana a cabeça, como dizendo para não te preocupares. Eu também olho para ti. Estou sentado ao lado da tua avó, e ela chama-me “padrinho”. Na minha velhice, devo ser parecido a alguém que ela conheceu na sua juventude. Não se apercebe de quem sou.

A enfermeira tenta acalmá-la, e ela grita por mim “Não deixe, padrinho, não deixe!”

Como se eu pudesse impedir alguma coisa.

Encolhes os ombros enquanto olhas para mim, tu também não me reconheces. Não me devia estranhar, eras muito pequenino. Viras as cosas e sais, com uma cara triste, com o olhar encharcado de palavras e emoções. Deixas-nos com os nossos fantasmas, a nossa idade avançada, os nossos comprimidos.

Manicure.

Nessa tarde, ao chegares a casa, vais questionar o teu pai sobre quem é a Manicure. Ele não vai querer falar, vai balbuciar “não sei”, mas tu vais conseguir ver na expressão dele que ele sabe quem é a tal Manicure. Vais implorar com os teus olhos e com a tua sede, vais explicar que a avó te chamou esse nome, mas que não percebes. E ele vai ceder, porque tu és filho dele e os pais cedem sempre.

“A tua avó e o teu avô…” Ele vai começar como quase todas as histórias de amor. Rapaz conhece rapariga – ou melhor, rapaz e rapariga conhecem-se e apaixonam-se.

“Mas o avô morreu na guerra, quem ajudou a avó foi o tio Lúcio” vais completar.

O teu pai vai anuir, e vai mexer na orelha, como sempre faz quando está nervoso.

“O tio Lúcio era como um pai para mim.” Vai dizer simplesmente.

“Não me digas que a avó se apaixonou por ele e ele fugiu com a manicure!”

O teu pai vai olhar para ti meio assustado, meio divertido. Vai pensar que devias escrever livros ou telenovelas, e vai sentir um enorme carinho pela tua juventude e uma enorme saudade da sua inocência.

“Não. O tio Lúcio e a avó apaixonaram-se, sim, como é natural. Para mim, era como meu pai… e para ela era um apoio enorme, o melhor amigo. Acho que o tio Lúcio sempre gostou dela, mas…” e o teu pai vai fazer uma espécie de floreado com a mão, que te vai dar a entender que nem sempre o destino é amável. E vai picar-te um pouco o coração, ao teres um vislumbre de que nem sempre tudo pode acabar bem, mas esse incómodo vai passar, perdido na história e em todas as tuas preocupações jovens.

“Casaram?”

“Sabes que as alturas eram outras! Ele queria, mas não chegaram a casar.”

O teu pai vai olhar para baixo, e quando levantar de novo o olhar para encontrar o teu, vais ver dor e vais lembrar-te que ele é humano. Vai picar-te de novo o coração.

“O tio Lúcio desaparecia à noite, e a avó uma vez descobriu que ele era o famoso… bom, famoso no sentido errado, não é? Mas ele era o famoso Manicure.”

“O que é que isso quer dizer?” a tua mente vai pensar logo em serial killers e filmes policiais.

“Torturava pessoas para a PIDE. Arrancava as unhas aos presos.”

Não vais saber se abrir mais a boca ou os olhos. Vais ficar com o coração acelerado, com a boca seca, vais sentir-te mal-disposto e absolutamente triste pelo destino dos teus avós, da tua família.

Talvez da próxima vez que a venhas ver ao lar, te lembres de mim e me reconheças. Pelos vistos, tu és parecido a mim, e eu sou parecido ao padrinho dela. Só agradeço ao destino que não permita que ela me reconheça agora, assim, na velhice, e que me deixe passar estes últimos anos na companhia dela.

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