Estou sentada na sala de cinema e aguardo que o filme comece. Sei que é denso e forte, o que ainda me cria mais expectativas. Os trailers muitas das vezes passam uma ideia errada da trama, mas decidi vê-lo, mesmo assim. Aguçou-me a curiosidade. Desde que me lembro que gosto de cinema e recordo-me muito bem de ter ido ao Cinema Império ver o filme Mary Poppins com a minha prima Célia e os meus tios. Para quem nunca viu, aproveite, veja e aprenda o que era fazer cinema sem efeitos especiais como os do Spielberg e cativar um público do princípio ao fim. Anyway, avancemos, porque não é dele que trata este artigo.
O cenário é apaixonante. Água, mar, gaivotas, barcos e uma imensidão de nada que nos envolve logo no início. Gente simples, com vidas vulgares e que podem ser os conhecidos de todos. Famílias jovens e relações que não são perfeitas. O lado Atlântico da América, o dos pescadores, das vidas complicadas e das teias de relações que se estabelecem entre eles. O mar e a sobrevivência.
Um barco, dois homens e uma criança. Um pai, um tio e um filho e sobrinho. A iniciação na vida que se aproxima, na vida possível naquele lugar, no sustento honesto. Homens e uma amizade tão forte que chega até aos mais insensíveis. O homem que conduz o barco é o pai da criança e tem um problema de coração que o condena a uma vida curta. O irmão é a segunda linha defensiva, assim uma espécie de glóbulos brancos daquela família.
Há qualquer coisa que transmite negatividade e não se percebe de onde vem. Tudo decorre normalmente, vidas de labuta e de amor. A mãe da criança não tem competência para cuidar dela e o pai terá de fazer os dois papéis. Difícil e agravado pela facto de ter um coração que o pode trair a qualquer momento. Ela é fraca e não aguenta o embate da vida.
Aqui começamos a perceber que é um filme sobre homens fortes, homens que têm a função titânica que costuma corresponder às mulheres. São eles que vão colar as pontas soltas da vida, são eles que prendem os arames das relações, são eles que movimentam os seus no mar de uma falsa tranquilidade. São eles os protagonistas. São eles que fabricam o ninho e lhe fazem a manutenção. Elas estão lá, mas têm outra função. É um filme bruto.
O protagonista é-nos apresentado como um faz tudo. Porteiro num bloco de edifícios, trata do que é necessário e nunca se queixa. Aliás, é homem de poucas falas e de muitos trabalhos. Passa despercebido e tem uma existência miserável, acabando por não responder aos estímulos que lhe são facultados. É como se não estivesse ali. Vive num minúsculo apartamento e é suficiente para ele.
Um dia, quando está a limpar o gelo na entrada, recebe um telefonema que altera a sua rotina temporariamente. Quando chega a Manchester, ao hospital, o seu irmão tinha acabado de morrer. Aceita com a maior das calmas. Pensamos que esta calma se deve à doença. Errado. Mais um alfinete que vai picando.
Regressa à sua cidade natal e terá de enfrentar a dura realidade que se avizinha. O irmão tinha providenciado tudo e ele será o tutor do seu filho de 16 anos, um rapaz como qualquer adolescente, o que já de si é problemático. Lee, o protagonista, mergulha cada vez mais num silêncio tremendo, numa solidão profunda que nos puxa e arrebata.
Vamos tendo pistas, com memórias que vão surgindo, quando se percebe que ele as tentou enterrar. Elas saltam, a cada esquina, prontas para o relembrar de tudo o que aconteceu e colocar um peso ainda mais forte nos seus ombros. É agora que temos a certeza que este é um filme sobre a vida, sobre a morte, sobre o renascer e sobre a culpa. É um filme doloroso.
O tio do rapaz é casado e tem duas filhas pequenas e um bebé. A mulher está do seu lado e organiza a vida como pode e sabe. Sofre de sinusite e necessita de alguns cuidados especiais. Numa noite de farra, com os amigos, a situação descontrola-se um pouco e a mulher manda todos embora para as crianças dormirem.
Lee, completamente etilizado e pedrado, sai de casa e vai fazer compras. Como não está em condições de conduzir o percurso é feito a pé. No regresso, sente um cheiro forte e uma luz enorme acorda-o bruscamente para a realidade. A sua casa está a arder. A mulher é salva, mas os seus três filhos não resistem à tragédia. Uma dor tão grande que ficamos imóveis.
É ilibado pelo seu descuido, por não ter colocado a protecção na lareira, ficando livre para seguir a sua vida. É uma pessoa querida na sociedade local e todos estão solidários com a sua desgraça. Saca a arma a um dos guardas e tenta suicidar-se. É neste momento que ele morre, uma morte tão profunda que o irá acompanhar até ao fim dos seus dias. Não está no Purgatório, mas sim no Inferno, a arder constantemente.
Entendemos por que a sua vida miserável na outra cidade é vivida com humildade e aceitação. Está a tentar expiar a sua culpa, aquela ordinária que o pica a toda a hora. As tarefas de menor importância servem para libertar a sua cabeça, para fazer a catarse da sua vida, o exorcismo de tudo o que aconteceu.
O regresso a Manchester é uma machadada para ele. Ter de enfrentar tudo de novo, acrescido da responsabilidade de tomar conta do sobrinho, torna-se insuportável. No funeral do irmão, efectuado em condições muito peculiares, volta a encontrar a ex-mulher que refez a vida e está grávida. Novo golpe forte nas costas. Cada vez fica mais curvado de dor e culpa.
Tudo se aviva como se tivesse acontecido naquele dia, tudo regressa à sua mente para o infernizar até ao final. Ele debate-se, tenta ser racional, mas está um farrapo humano e não consegue dar a volta. Não pode. Os laços que se estreitam com o sobrinho ainda tornam a situação mais dolorosa. Ficam tão fortes que nos esquecemos da desigualdade emocional entre os dois.
O clímax é atingido, quando, por um mero acaso, volta a cruzar-se com a ex-mulher. Ela, igualmente desfeita, acaba por pedir desculpa por tudo o que lhe disse, que deduzimos ter sido terrível para ambos. Depois, lavada em lágrimas confessa que o ama e nesse momento morremos com ele, com todo aquele peso, com aquela dor tão profunda que nos comove e impele a suspirar por ele.
Lee volta a morrer e não há forma de ser ressuscitado. O mar que os rodeia não é símbolo de vida, mas sim de morte. O filho que ela empurra no carro é a sua dor, a sua memória pesada que nunca irá desaparecer. A morte veio para ficar e a nuvem que ela liberta não se irá dissipar. Ela abre o seu coração e ele desnuda-se, mas não pode ficar.
A luta psicológica é tremenda. Os silêncios são prolongados e preenchidos com fisgadas de migalhas de felicidade vividas numa época de tranquilidade. O mar onde Lee navega é revolto, carregado de tempestades e a bonança nunca chegará. Lee é um destroço humano, não um sobrevivente, mas sim um sarrafo que flutua numa água cheia de tormentas.
Ele não consegue combater os seus fantasmas, apesar de encontrar uma tábua de salvação onde se agarrar: o seu sobrinho, Patty. São homens que crescem, que se mostram, que se despem de preconceitos emocionais, que choram, que carpem as suas dores e a sua solidão. Rompem as barreiras. Este é um filme sobre solidão.
Os diálogos são mínimos e muito intensos. As dores são repartidas, mas a de cada um é sempre mais forte, mais intensa e mais profunda. A aceitação dos factos é complicada e violenta. O frio da estação passa para a alma dos protagonistas e para os espectadores. Ninguém fica indiferente ao que se passa. É uma realidade que pode tocar a qualquer um.
O barco, veículo para a vida, para a continuação de um caminho vai ser o contrapeso para a decisão final. Lee está espoliado da sua vida, mas não quer que Patty sofra como ele. Está na fase da descoberta, no início de uma vida que se pretende alegre e sólida. Os amigos são o grande pilar, mas não o suficiente para agarrar Lee. Está morto e assim irá permanecer.
As gaivotas levam-nos para outras paragens e Lee também irá voltar a partir no Verão, quando Patty estiver com a vida orientada e os carris da sua vida funcionarem. Até lá existirão muitos encontros e desencontros, muitas flores que darão frutos e muitas mágoas que serão vividas.
As interpretações são fantásticas e Casey Affleck arrisca-se a ganhar o Óscar. Em todo o filme, só sorri uma única vez, quando está no barco com Patty e uma das suas namoradas. Esta quer conduzir e atrapalha-se. Patty ajuda-a e Lee percebe que o seu trabalho está a ser bem feito. Tem de seguir o seu caminho.
Neste filme, não encontramos nem Céu nem Nirvana. O que sentimos é o Purgatório e o Inferno que espreitam a cada esquina, a arderem na alma de cada um e na nossa também. Casey Affleck e Lucas Hegde criam uma simbiose perfeita que resulta numa densidade dramática que nos sufoca e assusta. Podia acontecer connosco.
A acompanhar toda esta trama, a música toca-nos ainda mais fundo. As escolhas são perfeitas, permitem sofrer, doer e massacrar ainda mais aquela alma atormentada que se desdobra em dores e culpa. A banda sonora leva-nos às lágrimas com a maior das facilidades.
A saída possível é renascer das cinzas numa outra cidade onde os fantasmas não voem tão próximo e onde as recordações não se encontrem em qualquer local. Fica uma réstia de esperança que sabemos ser teórica pois o exílio a que Lee se entregou não lhe permite que o sol rompa entre as nuvens escuras que não abrirão jamais.