A série americana House of Cards é um dos grandes sucessos recentes junto do público. O drama conta a trajectória do congressista Frank Underwood e a sua busca por poder e vingança, mas também serve como um retrato fiel dos bastidores da política americana e dos jogos de interesses e de manipulação que acontecem nas sedes do poder. Contudo, como Mark Twain uma vez disse, “a verdade é mais estranha que a ficção”.
Na vida real, os capítulos da crise política no Brasil e o processo de destituição (impeachment) da agora ex-presidente Dilma Rousseff foram de tal forma recheados de acontecimentos e reviravoltas, por vezes bizarras, que renderam comparações directas com a série. Até os próprios produtores da série americana já afirmaram, em tom de brincadeira, que seguiam o desenrolar das notícias brasileiras. Sítios na internet já prepararam quizzes do tipo “aconteceu no Brasil ou em House of Cards?” e, inclusive, fizeram uma versão brasileira para a abertura da série, com os principais personagens da política actual.
Brincadeiras à parte, a verdade é que tudo isto é um espectáculo deprimente, cujo enredo já se desenhava desde 2015, primeiro ano, já turbulento, do segundo mandato de Dilma Rousseff. Num contexto de crise económica, alta da taxa de desemprego, volte face em promessas de campanha e desgastes cada vez maiores nas relações com a base aliada na Câmara dos Deputados, a posição da então presidente ficava cada vez mais fragilizada. Isso sem mencionar as revelações da Operação Lava Jato, a investigação que continuamente desvenda até onde chegam os tentáculos da corrupção na política do país.
Perante esta realidade, a polarização partidária da sociedade brasileira, escancarada pelas eleições de 2014, começou a ter consequências mais sérias. Sectores mais conservadores da população passaram a reivindicar a renúncia da presidente, ou a sua destituição pelo Legislativo. Fosse um ou outro meio, não interessava, o que importava era tirá-la do poder, como se ela sozinha fosse a fonte de todos os males. Enquanto isso, outros sectores, geralmente associados a sindicatos laborais, defendiam a permanência de Dilma, embora protestassem contra os ajustes fiscais instituídos pelo governo, na tentativa de reanimar a combalida economia brasileira.
A tensão política e social continuou. A insatisfação da população ganhou eco num Congresso fracturado e cada vez mais distante da governação. Os deputados começaram a procurar razões plausíveis para afastar Dilma do poder. Em Dezembro de 2015, Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, autorizou o início do processo de impeachment de Dilma, por alegada irresponsabilidade fiscal. Nessa decisão, estava uma resposta aos desejos do povo (ou parte dele) misturada com um acto de vingança pessoal. Assim, começaram oficialmente os nove meses de um espectáculo de horrores.
Dilma foi incompetente na gestão do país e não soube (mais me parece que ela não quis) lidar tão bem quanto o seu antecessor, Lula da Silva, com os acordos de bastidores tão próprios do sistema político brasileiro. Por outro lado, ele, assim como o Partido dos Trabalhadores, deixaram-se engolir pelo sistema e fizeram esforços apenas para perpetuarem-se no poder. Essas falhas acabaram por estourar e colocar Dilma contra a parede. Contudo, se há alguém que acredita que os parlamentares que a destituíram são inocentes, está redondamente enganado. Pelo menos dois terços dos representantes do Congresso brasileiro são acusados de crimes tão ou mais graves do que aqueles por que Dilma foi afastada. Estou a falar de compra de votos, branqueamento de capitais, tráfico de influências até o uso de trabalho escravo… preciso continuar?
Lembro que no dia da votação do processo pela Câmara dos Deputados, havia duas aglomerações em pontos distintos (e distantes) da cidade. Uma era a reunião daqueles que apoiavam o impeachment, vestidos de camisas verde-amarelas, algumas da Selecção Brasileira. A outra era dos contrários ao processo, vestidos de vermelho e portando símbolos do PT e de sindicatos laborais. Fui ao local do grupo do “não” e observei, pasmo, a forma como reagiam aos discursos que antecederam a votação. Pareciam cidadãos da Oceânia nos “dois minutos do ódio”, no livro 1984, de George Orwell. Vaias para o lado contrário e aplausos para o seu, como claques de futebol fazem nos jogos. Só que isto não é um jogo.
Não tive estômago para ver pela televisão a votação do impeachment na Câmara dos Deputados, mas acompanhei pelo rádio os pronunciamentos verborrágicos dos parlamentares que diziam sim ou não ao prosseguimento do processo. A cada “sim”, bradavam coisas do género: “Pelo fim dessa quadrilha que assaltou o meu país”, em referência ao PT, ou “Por Deus, pela minha família, pelos evangélicos da nação”, ou “Pelos meus filhos, pelos meus pais”, etc. Cada “não” vinha atrelado a discursos do tipo: “Para defender a democracia brasileira”, “Pelo empoderamento das mulheres”, defesas de minorias ou denúncias do suposto golpe. Um espectáculo no mínimo caricato e que escancarou o perfil daqueles que (não) representam a população brasileira.
https://www.youtube.com/watch?v=Md2xFsX-4vM
Esquecidas estavam as acusações que motivaram a abertura do processo e a votação em primeiro lugar. O momento em que os deputados foram ao microfone para declarar o voto na Câmara era mais de catarse “heroica” do que de razão e sensatez. Ver deputados que defendem os próprios interesses a apregoarem discursos supostamente puros e heróicos deixou-me desiludido e entristecido. Ver cidadãos a se partidarizarem e a defenderem lados com unhas e dentes também.
No meio da gritaria e da ruptura da sociedade por linhas ideológicas, eu fugi (e ainda fujo) da confusão. Não compro o discurso de que o processo foi concretizado em prol do combate à corrupção, pois os deputados e senadores que destituíram Dilma são acusados de crimes muito mais sérios do que os dela, como também não adiro à narrativa de que a presidente foi injustiçada e houve um golpe contra a democracia, apregoada pelos partidários de esquerda. Agora que Dilma e o PT foram escorraçados do poder, tanto na esfera federal como nas autarquias, não será que a verdade estará algures pelo meio dessas narrativas?
Não há inocentes ou heróis em todo esse teatro. Nem o juiz Sérgio Moro, figura principal da Operação Lava Jato, exaltado e idolatrado como o senhor da chamada “República de Curitiba” e salvador da pátria, uma figura com a qual os brasileiros sonham desde tempos antigos. Apesar de isto estar longe de ser uma realidade nova, entristece-me que o Brasil esteja refém de uma classe política que está mais preocupada com suas próprias picuinhices do que com os problemas dos cidadãos que deveria representar. A julgar como andam as coisas por cá, acredito que as tramas desta grande novela que é a política brasileira ainda estejam longe de terminar, mas o meu maior desejo é que o Brasil se torne, de facto, um país de ordem e progresso.