A memória foge-me com o passar dos anos, imagino que só piore até ao ponto em que eu própria viva no passado e nem saiba mais o que é ser presente. Deixei-me levar pelo dia-a-dia até que já não sabia em que ponto tinha começado a esquecer-me, nunca de quem sou, mas às vezes de onde vim. Esquecida de ver o trigo a crescer em direcção ao sol, de ver a joaninha a fugir das gotas de chuva e de brincar nas poças de água. E isso deixa-me triste.
No entanto, eu volto no tempo e peço ao Tempo que me traga de volta aquela flor que a minha avó cultivava nos seus vasos, que me dê a chuva no campo como em tempos cheirei, e peço-lhe, acima de tudo, que me sussurre aqueles desafios que só à minha mãe dava autorização de compor contra mim. Eu peço e ele traz, com esforço e um pouco de imaginação. E isso deixa-me feliz.
É aquele encanto de primeiro amor, vivido por quem já passou por outros caminhos, e já conhece o ranger de outro chão, mas não esquece nunca quem lhe traz e fez bem.
Vivo no presente, atraiçoada pela própria memória que teima em deixar para ontem várias faces, cheiros e trambolhões. O olhar – esse vadio que já carrega novas cantigas – não esquece nunca os serões a aprender a escrever com o avô, a sopa da avó, o jogo de bola com o pai ou o pentear de cabelo pela mãe. Mas já se lhe fugiu o cair da bicicleta, a fotografia no pónei do Bom Jesus e a primeira vez na praia. Vagabunda pela vida, perdida numa máquina do tempo de único passageiro, vou compondo uma serenata ao passado, com tons do presente e palavras que outrora me ensinaram a segredar…