Há pessoas deficientes. Não, não vou usar-me de cobardes eufemismos. É precisamente isto que eu quero dizer. Não falo de deficiências físicas ou mentais. Falo de pessoas que não sabem estar.
Existem pessoas desajeitadas nessas coisas do amor, da amizade ou mesmo do bom senso. É que nem sequer se pode dizer que agem com intuito de magoar. Seria talvez até mais aceitável (inteligente?) a maldade do que a falta de percepção. De facto, parece que são incapazes de ver o óbvio, que é o desagrado que causam no outro com as suas inconveniências. São pessoas que vivem num mundo tão seu, que são incapazes de sair dele para se colocar no local do outro. E o que é pior, não entendem o porquê da dor que, indubitavelmente causam. Se questionados sobre a barbárie, justificam com a boa intenção. E dessas, sabe-se, está o inferno cheio.
Comecemos com uma experiência minha: que (raio de) escritora és tu se não tens um livro publicado? Ora bem…. parece-me muito redutor achar que escritor é quem tem livros publicados. Há livros por aí editados de forma muito pouco ortodoxa, basicamente impressos, em que até parece que o autor (prefiro a denominação) mal domina o alfabeto. Mas nem é essa a questão. O ponto fulcral foi deixar claro que eu, no caso, fico muito aquém do que espera de mim, porque (ainda?) não tenho nenhum livro publicado em exclusividade. Também não me perguntou se é isso que pretendo. Ou se não fiz por diversas razões pessoais, entre as quais me dar muito mais prazer a interação nas revistas ou nas páginas on-line ou nos directos.
Se fosse só comigo…
Há aquela coisa que até seria um elogio se a pessoa soubesse calar-se a tempo. Do género: estás tão gira/magra/elegante. E começas a agradecer, sorridente, quando és interrompida por um esclarecedor: há uns tempos estavas mesmo desleixada/gorda/sem jeito. Claro que isso pode ser feito para majorar a melhoria, abrindo um fosso imenso face a um passado tão desastroso, com o elogioso enfoque na situação actual, mas …. Se se tivesse calado no início da frase estariam todos felizes. Ou como diz o povo … calado és um poeta.
Um amigo meu, quando visita o pai, ouve sempre o mesmo: olá, olá, então já és director?… Esta coisa de impor aos outros vontades nossas que se calhar, ou muito provavelmente, não se concretizaram, é pesado. O rapaz ignora a pergunta, mas o pai insiste: é que todos os engenheiros que conheço são directores ou mesmo administradores. Claro que o pai não sabe que o filho, que até é esforçado, está profundamente descontente com o emprego que tem, onde a progressão é tudo menos justa e onde factores como qualidade de trabalho técnico, inserção em equipa e outros critérios válidos são facilmente sobreponíveis por outros de menor rigor. Mas isso o pai nunca saberá, e para quê, se já concluiu da pouca validade do próprio filho. Já estranhará que não sendo director, e portanto tendo menos responsabilidades que lhe consumam tempo, o visite cada vez menos.
Outra moça que conheço editou recentemente um livro de poesia em edição de autor. O comentário da mãe foi tão descabido como: Poesia?… poesia?! Ah… pronto, está bem, é o que tu gostas, não é? Mas teria sido melhor escreveres um romance histórico, não? E que tivesse visibilidade nos escaparates das livrarias…sempre podia elogiar-te às minhas amigas e elas iam ver os teus livros à venda. Agora poesia… hum… logo fazes melhor. É isso, logo faz qualquer coisa de jeito. Eventualmente escrever sobre uma mãe desbocada.
Contudo a tristeza dos comentários alheios também pode ser cómica. Um rapaz que conheço recebeu um prémio num concurso de poesia referenciado. Ao participar ao avô, todo contente, recebeu de volta o seguinte comentário: sais a mim, sabes que no tempo da escola primária também ganhei um prémio com esta quadra: O Manuel joga a bola / Lá para os lados do jardim / Guarda os livros na sacola / Come bolas de Berlim. Por isso, se quiseres posso dar-te umas dicas. Quase erudito. Eu é que sei.
Há ainda aquela minha amiga que, ao terminar um namoro de 5 anos, visivelmente triste e chorosa, ouviu do pai: talvez não tenhas vocação para o matrimónio, nem toda a gente tem. Parece que também há pais sem o dom da sensibilidade, nem todos têm…pelos vistos.
Estas frases foram ditas, se não ipsis verbis, pelo menos no sentido, que guardo de memória dos desabafos dos próprios.
Não foram estranhos ou pessoas com intuito claro de magoar – seria recriminável mas entendível. Foram pais, avós, como seriam irmãos, cunhados ou mesmo amigos supostamente próximos. Pergunto-me em que mundo vivem estas pessoas, num alheamento que atinge os outros sem dó. As expectativas – à sua maneira – que geram sobre os outros, e o imediato julgamento de poucochinhos ou incapazes, porque o outro não cumpre o que lhe foi por si destinado, são uma agressão. Habitualmente, o silêncio é o melhor remédio, sendo causado não tanto por uma não resposta a provocações, mas o resultado do espanto que leva as palavras para outra dimensão. A boca abre-se sem que o som saia.
Mas há situações, pela gravidade ou pela insistência (porque o outro teima em não atingir o objectivo que EU lhe impus…) que não permitem o silêncio.
Estas pessoas, quando são confrontadas, respondem que não é por mal, que se têm esta expectativa é porque nos têm em boa conta e, portanto, esperam mais de nós. Em mim isto nunca soou como um elogio, mas antes como um atestado de podias ser muito mais do que és. Um certificado de pequenez. Mais do que frustração por não ter alcançado o que outro estimou para mim – o que até pode nem me dizer nada – causa-me tristeza, porque revela uma falta de sensibilidade e de conhecimento sobre o que me faz feliz.
Não será também alheio o facto de estas pessoas, dotadas de insensibilidade plena, terem habitualmente uma vida em linha recta, previsível e costumeira, sem grandes marcos ou referências, leia-se feitos e conquistas. Faz o que eu digo, não faças o que eu faço. Faz é tudo aquilo que eu não fiz.
Guardei a melhor para o fim. Sad but true. Uma amiga recebeu recentemente a notícia de que tem cancro da mama. Depois de alguns dias para digerir o tema, conjuntamente com o marido, resolveu reunir a família mais próxima para comunicar o facto. A sogra (devia ser dos nervos, coitadinha), saiu-se com esta: ah…nunca esperei por isto…por esta é que eu não estava à espera….pensei que a reunião era para nos dizerem que iam fazer a festa das bodas de prata. Tal e qual, mesmo assim. Um mimo.
Agora façamos todos um minuto de silêncio pela alma das pessoas que não têm noção. Ou dois, ou três.
Ou talvez devessem ser eles a fazê-lo. Para sempre. Por favor.