Até no silêncio conseguia sempre ouvir a música delas. Tinham um ritmo constante debaixo da pele, cada movimento amanhecia um som. Ouvia-lhes a vida inteira. E admirava-se muito e orgulhava-se muito.
Porque aquelas mulheres tinham cicatrizes de lava na pele cor de terra. Já tinham sido labirinto e mar agitado, até ao dia em que destrancaram as portas e decidiram dançar. Cirandavam sem receio de cair, como se o chão guardasse as memórias dos seus passos. Riam alto, especialmente na dor, eram orvalho que brilhava.
Ela nunca fora assim. Não era feita de canções, tinha um corpo surdo, de gestos desafinados. Era sombra e vento, ADN errado. Mas sabia entender os tons dentro delas e as tempestades com que dançavam. E admirava-se muito e entristecia-se muito.
Porque ela não tinha coragem para escancarar portas. De madrugada, era capaz de as entreabrir, sentar-se à espera, observar o escuro. Depois, voltava a fechá-las e confirmava que nunca seriam arrombadas, que nada passaria pela fechadura, que as dobradiças continuavam fortes. Deitava-se com as chaves presas ao peito.
Mesmo antes de o Sol nascer, começava a escutar o compasso do peito delas e fechava os olhos. Só adormecia quando o silêncio estava cheio da música que elas carregavam dentro. Já intuía que era aquele o som da salvação: pés irrequietos, ancas livres, vozes de ternura e riso. E ela admirava-se muito e orgulhava-se muito e entristecia-se muito. Porque quem as visse dançar, não imaginaria o tamanho dos demónios que dançavam com elas.