Estar sempre em bicos de pés e mesmo assim não tocar o céu

Um gato amarelo deitou-se em cima dela e usou a tristeza como almofada. A mulher sorriu para ela e enxotou-o com gentileza, tinha mãos lisas que pareciam não pertencer ao rosto com rugas fundas por onde corria uma vida. O gato levantou-se, mas ficou com as unhas presas e desfiou-lhe um pouco do peso que ela carregava no peito. As mãos lisas desprenderam-lhe a pata com carinho. Ele saltou para o chão e lambeu a tristeza que lhe ficara agarrada ao pêlo.

Ela chorou. Vivia dentro da sensação de estar sempre em bicos de pés e mesmo assim não conseguir chegar – nem ao tecto, nem ao céu, nem a ser gente.

A mulher massajou-lhe as orelhas, desfazendo algumas palavras no ouvido que a magoavam. Mexeu-lhe os pulsos, apalpou-lhe o pescoço e sentiu-lhe as palpitações. Encostou a cabeça ao peito.

“Pois,” a preocupação nos seus olhos escuros cheios de água. “Pois.”

Ela não se atreveu a perguntar à mulher se a podia ajudar. Fechou os olhos. Limpou as lágrimas.

“Pelo que oiço, parece-me que existe alguma inquietação nas pessoas que já foi” anunciou a mulher.

“Certo. Então e que faço? Expulso-as de mim?”

“Não, nunca. Geralmente só querem ser ouvidas, lembrar-lhe de algo. Tem sido honesta consigo?”

“Não sei o que isso significa.”

“Bom, não é a única. Talvez… não sei, estou a pensar em qual seria a melhor arte para si. Faça assim, dispa essa camada de cepticismo que tem em cima. Se quiser privacidade pode ir à casa-de-banho, é aquela porta” apontou.

Ela levantou-se e foi até à casa-de-banho. Tinha chegado até à casa daquela mulher artista a saber que era a sua última hipótese. Já tinha consultado arqueólogos que não souberam desenterrar o passado, bruxas que só tinham invocado qualquer coisa que lhe hibernava na memória e lhe deixara aftas no pensamento, mecânicos que lhe diagnosticaram um reservatório de amor vazio, mas que não tinham as chaves adequadas para o abrir. Por isso, só lhe restava uma artista, alguém que lhe transformasse as dores em beleza.

Quando saiu, a mulher cantarolava as músicas que percorriam a sala vindas de um rádio escondido, canções enroladas em estática. Pintava coisas, escrevia coisas, fechava os olhos e abanava a cabeça a ritmos que ela não ouvia. Ela não quis ver mais, voltou a deitar-se. O gato subiu para as pernas dela. Ronronava.

“Confia em mim ou quer que lhe explique os procedimentos?” perguntou a artista.

Última hipótese. Nada a perder. “Confio.”

Sentiu as mãos lisas a tocarem-lhe nos braços, nas pernas, a procurar-lhe as fendas do corpo. Com os dedos, abria um pouco as frestas e deixava lá cair cores, colcheias, letras, ideias, arabescos, sussurros, imagens. Ela apertou os maxilares com dores. Não sabia porque pensara que seria indolor, até parecia que nunca tinha escarafunchado uma ferida.

Viu de relance os dedos da artista, a polpa manchada com as artes que tinha conseguido agarrar. Tocava devagar na fenda massacrada como se quisesse misturar e transformar esses pequenos brilhos. A seguir, preenchia-lhe a pele com pequenos mosaicos coloridos.

Após algumas horas, sorriu-lhe: “Pronto.”

“Estou curada?”

“Não, de todo. Só alimentámos um pouco o seu interior. Coloquei várias artes no seu reservatório para vermos que maravilhas mexem consigo. É com elas que vai conseguir trabalhar as tristezas, viver com encantamento, acalmar quem já foi, descobrir quem será. É um trabalho constante. Viver dura toda a vida.”

Engoliu em seco. Entendeu.

Passou os dedos trémulos pelo seu corpo, casa de tanto passado, transporte para o futuro, agora tão cheio de arte, de maravilha. Passou os dedos pelos mosaicos espalhados pelo seu corpo. Se calhar, ela sempre fora arte, sempre fora maravilha. Se calhar. Naquele momento sentia-se, pelo menos, gente. Não, não: sentia-se pessoa. Sim, pessoa. Sentia que os calcanhares voltavam a tocar no chão porque ela não precisava mais de estar em bicos de pés. Afinal, pareceu-lhe, era assim que tocava no céu.

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