Elsa

A primeira impressão nem sempre é a melhor, a mais certa ou a que prevalece. Vejamos como foi. Começou por ser a namorada do vizinho que deixava ficar um rasto de cheiro a frango assado na escada, mas, em pouco tempo, passou a ser mais uma vizinha.

Prédio de gente bem jovem em início de família. Uns já com filhos, outros com ideias de tal e outros nem por isso que a vida mostra quando a esteira está pronta para ser estendida. Um prédio é um mundo pequeno e interessante.

Primeiro são os cumprimentos de boa educação, os bons dias e depois, com mais olhos de saber ver, passam a ser verdadeiramente sentidos e as vidas vão-se cruzando como o ponto certinho e regular dos vários tipos de costura. As relações de vizinhança estreitam-se e passam a nascer as amizades.

Nunca fui de grandes conversas com a Elsa. Talvez por eu morar no segundo andar, o mais movimentado, onde as portas estavam sempre abertas e os filhos eram comunais. Ela morava no quinto andar e aí era outro território. Não havia motivo algum a não ser a distância.

As crias do nosso jardim privado, as autóctones, começaram a nascer e a Elsa foi mãe de uma menina. Cada um saía de casa para cuidar dos seus afazeres e, ao fim do dia, vinham as mães com os rebentos faladores e a música que se ouvia eram as vozes infantis.

Contudo a Elsa não era de se entrosar. Criada numa ilha, lá para os lados dos Açores, o sentimento de porta fechada e de apertadura não desaparece com facilidade. Até que a vida começa a mostrar que nada é como se pensa e que cada dia é uma nova aventura bem desafiante.

Num curto espaço de tempo a Elsa passou a ser a mãe da Mariana. Ela e as outras que foram mães, mas aqui há uma partícula de sapiência metafísica que tudo muda. Esta perda de identidade tem um motivo que já aqui o contei, a Mariana tem um mundo mágico onde vive e espalha pós de estrelas por onde passa. Para ela tudo é fácil de entender, mesmo que não perceba nada do que se passa.

Para ser sincera é um pouco como no mundo dos infantários e creches, as mães não têm nome, somente os filhos têm identidade e muitas queixas das educadoras que são as mães de todos em horário diurno. Passa-se o mesmo com os cães, mas não vem agora para o caso.

A Mariana é uma pessoa dotada com características muito específicas e, como a sociedade não está preparada para receber um dom destes, a Elsa teve de deixar de trabalhar para se dedicar por completo à filha. Hoje tem o nome de cuidador informal.

Não foi fácil tomar esta decisão, mas entre os prós e os contras, foi a opção que pareceu mais justa e acertada. Para tal teve de deixar os seus meninos, os filhos dos outros, a mãe de dia, pois era educadora de infância, para ter que enfrentar um grande desafio, constante e arrebatador.

A Mariana é a saúde em pessoa, de mão dada com a alegria e a satisfação. Que bom que assim é. Não será uma mulher como as outras, as que um dia desejam ser mães, ficou num limbo de puberdade, nem sonha com príncipes ou com castelos. Não será melhor assim? Não há lugar a desgostos e muito menos a desilusões. É realista e atenta, o que falta a muitos ditos “normais”.

O que é ser “normal”? Há algum padrão que se possa usar para se medir a normalidade, assim como uma fita métrica ou uma balança? Desconheço esse tipo de instrumento e, nos dias de loucura que se vivem, esse conceito deixa de fazer sentido, mas que sabemos nós sobre essas coisas? Nada.

A Elsa começou a viver mais intensamente quando ficou frente a frente com a filha. A verdade é só uma e os livros, cheios de teorias de quem não sabe nada de coisa nenhuma a não ser escrever disparates, não têm préstimo quando a realidade é outra. Aqui entra a capacidade de se reinventar.

Foi descobrindo caminhos e encontrando técnicas para lidar com uma filha que será sempre menina, mas que sente como qualquer ser humano sensível. Há que avançar e a tentativa e erro são importantes. Todas as hipóteses ensinam a cair e ainda a melhor levantar e a Mariana, que tem uns tenros 23 anos, é uma pessoa muito bem resolvida e feliz.

A Elsa deixou de ser a Elsa e teve que se anular um pouco. É este o papel do cuidador informar, dar ao outro o que ele precisa e esquecer-se de si. Contudo o que recebe em troca é um bálsamo que a revitaliza. E aquilo que ia ficando adiado ou nem pensado, como as viagens e outras trivialidades tão proveitosas, passam a ser planos que se concretizam e dão uma enorme satisfação.

A Elsa já não é a mãe da Mariana. Claro que continua a ser, mas tem um outro estatuto, é uma amiga, a que alinha nas minhas loucuras e eu nas dela e depois rimos imenso como se fossemos umas gaiatas inconscientes. Tenho a leve impressão de que a Mariana também me está a ensinar essa táctica de combate.

Esta é a vida a sério. Com trambolhões e rasteiras e com ensinamentos que são da maior importância. A Mariana é que nos vai dando dicas, ou melhor, tem educado os pais para a caminhada que é viver todos os dias. É um poço de boa disposição e dona do melhor pedaço. Não faz planos de carreira, mas gosta de ter as unhas pintadas e de vestir o que lhe assenta na perfeição. Mulher menina ou menina mulher, que isso não tem importância, é feliz, o maior dos valores.

O que faz o Estado nestes casos? Brinca com os pais ou com quem se entrega a estas tarefas complexas, pois aceita o estatuto, a muito custo, mas a ajuda económica é apenas uma miragem. Chegam a atribuir um suposto subsídio e depois retiram alegando que a pessoa não está dentro do parâmetro ou não tem os chamados requisitos necessários. É devastador este tipo de postura.

A Elsa mudou muito. Abriu a sua porta dos medos e deixou-os sair a voar. A sua conduta é outra, mais leve e larga, cheia de penas coloridas que deixam ficar um rasto de uma imensa beleza no céu. Encontrou assim o seu caminho, uma espécie de nirvana que a vai guiando. Não há adiamentos, é tudo para agora e o “carpe diem” soa a café que se toma com amigos de há muitos anos.

Ninguém sabe o dia que se segue, mas é essa a piada da coisa. Vive-se, cada um, com a vontade de trazer a carga certa e pensar que se chega a um porto onde as marés são calmas e seguras. As ondas têm águas quentes e essas arrastam para terra as medusas, os animais que fascinam a Mariana e que contagia todos com o seu entusiasmo.

Que planos é que se podem fazer? Dormir e acordar e no dia seguinte ter casa, comida, saúde e amigos para abraçar. A importância das coisas é a que lhes atribuímos, mas saber que se faz a diferença na vida de quem precisa, tem um outro sabor e nível. A Mariana pode não ter a noção da força da mãe nem dos sacrifícios que são feitos, mas fica satisfeita com o que tem.

E foi assim que a Elsa, a rapariga de olhar assustado com nuvens negras e pesadas, passou a ser a mulher leve, liberta e de mente gigante que sabe que pouco sabe, mas trilha os caminhos da vida com segurança. Agora é luz e cor, sons e gargalhadas de gratidão. A Elsa é a super-mulher/mãe, sem capa nem emblema no peito, que anda sempre na senda de soluções.

Cada pessoa tem um mapa do tesouro escondido em si. Apenas precisa de estar atenta para o descobrir. A vida coloca seres únicos no caminho e a Elsa, que está consciente de que somos grãos, uma mera poeira cósmica e um dia deixaremos de existir, aceita os lingotes que enriquecem a sua vida. Há vidas que possuem feitiços e esses servem para nos encantar.

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Comments 1
  1. Mais uma vez, ao ler este maravilhoso texto, sinto que sou uma sortuda em ter pessoas em meu redor que me apoiam e me elevam . Pessoas como a Margarida Vale. Sem elas, tudo seria mais difícil e sombrio. O que eu sou e o quanto mudei a elas o devo. Por isso, serei para sempre agradecida.

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