Peões da jogada

Manhã muito confusa. Trânsito caótico. Gente zangada. Sol e chuva e caras automatizadas de semana que começa ou continua. Rotina. Os gestos são mecanizados e tudo funciona como se estivesse em piloto automático.

Na pressa de ir para a paragem de autocarro, uma senhora escorrega e cai. O motorista abre a porta e saem algumas pessoas para ajudar. Talvez tenha sido do susto ou de se sentir vulnerável, mas as palavras que solta não são de agradecimento.

Senta-se no banco, recusando que se chame uma ambulância. Pergunto-lhe se quer ajuda para voltar para casa. Está zangada, mas estou em crer que essa discordância é apenas consigo. O corpo já não lhe obedece.

Envelhecer é uma porcaria, uma pouca de vazio sem sentido, um pedaço de dor que se entranha nos ossos e que vai, aos poucos e poucos, queimando a alma. Uma morte lenta de uma juventude longínqua. Uma verdade profunda.

Um senhor, já idoso, fica preso na cancela que dá acesso ao comboio. Os gritos não são de dor, mas, sim, de surpresa. Arfa cheio de raiva. Digo-lhe que já me aconteceu. Brinco e digo que está gordinho. Lançou-me uma espécie de sorriso. Parece um cadáver que se move com dificuldade.

Invariavelmente, ninguém se levantou para dar lugar a este senhor. É a cegueira temporária. É preciso mendigar aquilo que se chama de educação. Muito triste. Levanta-se, de imediato, uma senhora. A sério? Grávida, mas consciente. Que porcaria de gente sem a menor noção de estar em sociedade.

Enfim, retiro do banco um jovem, que se fez de distraído e com ar de muito parvo. Os fones nos ouvidos servem para tudo. O senhor senta-se com muita dificuldade. Agradece. Dou-lhe a mão até à minha paragem. Assaltou-me a imagem do meu pai. Ele desculparia tudo isto. Eu não. Sou frontal.

O metro está atrasado e circula nas linhas que não lhe competem. Discussão sem motivo entre passageiros. O leitor de passes não funciona. Irra! Hoje está bem complicado. Um acidente na ponte está a empatar a circulação.

Recordo Chico Buarque: “(…) morreu na contramão atrapalhando o tráfego (…).” Que segunda-feira gratificante. Há muito barulho de fundo. Felizmente estamos vivos. Há quem não tenha essa sorte.

Interrogo-me se vale a pena tanto rebuliço e tanta falta de sensatez. Certos dias tenho vontade de desistir. Hoje é um desses, um bom candidato. A vida é isto, um palco sem guião onde o ponto se ausenta. Há ou não opções?

A chuva parou e o sol abriu-se com tanta luz e tanto calor que obriga a despir casacos. Bipolar, este fenómeno natural. Tal como certas pessoas, as que nunca estão bem com coisa alguma. Pior, arranjam problemas onde eles não existem e gostam de mostrar que são estúpidas e ignorantes.

Somos meros peões num gigantesco tabuleiro de xadrez. A rainha é uma vilã e move-se em todas as direcções, de olhar sacana, com ousadia e elegância. A sua beleza confunde e baralha, mas faz parte do pacote. Siga que é bom ser carneiro. Os pequenos obedecem por querer e os outros, os que se rebelam, são apontados como sendo os delinquentes.

Esses, os da margem, aqueles que ensinam onde estão as brechas que permitem a infiltração, devem ser calados ou ouvidos? A verdade até pode doer, mas a vida, um bem pessoal e intransmissível, é plena de aventuras para se viver.

Vale a pena arriscar na jornada? Fazer tabela à baliza e falhar tudo? A queda ensina a levantar e se houver possibilidade de se repetir, que se faça com todo o esplendor de saber como cair. Elegantemente.

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