“Manual Para Mulheres de Limpeza”, de Lucia Berlin

Talvez tenha sido o livro mais importante que li nos últimos tempos e, apesar do título sugestivo (a importância dos títulos, sempre), demorei a baixar a guarda e deixar-me seduzir pela obra de Lucia Berlin.

A Sofia comprou o livro para o juntar à colecção de bolso da Alfaguara que está a fazer e, depois de largos meses de assédio desde a estante da sala, lá me deixei ir. Em boa hora o fiz pois desde o primeiro conto que este livro me prendeu: a sua leitura foi tão fascinante quanto os detalhes da vida da autora, uma mulher que viveu no Chile, no México e em pelo menos seis estados dos Estados Unidos, teve quatro filhos, três casamentos, lutou contra um problema de coluna toda a vida, bem como o alcoolismo, e passou por diversas profissões para se sustentar, a si e à família, desde professora universitária a empregada de limpeza, passando por assistente num hospital.

Uma vida tão rica merecia um registo e Lucia Berlin fê-lo, para nossa sorte, leitores que não só gostam de aprender através da ficção os ares de outro tempo, mas que vêem no conto uma forma sublime de expressão, o encanto da parcimónia sem deixar nada por dizer e, neste caso, sem ambicionar a outros voos do que relatar a vida como ela é, com detalhes, sem lições.

Segundo o filho, Nick, é difícil destrinçar o que é verdade e o que é ficção no que a mãe escreveu, mas das histórias que vemos em Manual Para Mulheres de Limpeza, quase todas na primeira pessoa, transparece um realismo tal que fica difícil pensar que foi tudo inventado.

Uma vez mais, Lucia Berlin é um caso semi-esquecido em vida cujo sucesso chegou tarde demais. Ganhou alguns prémios, mas nunca foi levada a sério pelo público, gozando de mais autoridade junto dos pares. Desaparecida no dia do seu sexagésimo oitavo aniversário, nunca experimentou o sucesso que este livro lhe granjeou. Esta colectânea reúne os contos que Berlin foi publicando em diversas obras e publicações ao longo da vida e abriu a porta do sucesso a esta grande escritora norte-americana. Seguiu-se-lhe Anoitecer no Paraíso, uma segunda colectânea que ainda não li.

Na tentação de tudo rotular, descairia para tomar estes contos como escrita feminina, mas, por um lado, não sei bem o que isso é e temo que em muitos casos possa ser depreciativo, e por outro, estas histórias são tão universais, tão visceralmente “vida do século XX”, que, ainda que contem a dura luta de uma mulher para vencer na vida através dos episódios mais mundanos, as alegrias e tristezas, o vicio e a pobreza, os pequenos affairs e a vida porque sim, porque corre depressa numa sucessão de coisinhas para as quais um dia olhamos e Olha! Já passaram x anos!, elas, as histórias, representam toda a humanidade.

Não fossem registadas e quanto não perderíamos! Por vezes é uma grande história que nos arrebata; noutras somos agarrados pela forma como nos contam um episódio sem grande interesse. Ou talvez a forma de relatar algo influa no conteúdo, aparentemente inerte e imune às palavras que se escolhem, e juntando a isso o momento, estado de espírito e a vida do leitor, temos a raridade que é um livro chegar fundo no nosso coração. Aconteceu comigo em Manual Para Mulheres de Limpeza, uma homenagem às mulheres, às dificuldades por que passamos, e ao poder do conto. Reitero: talvez tenha sido o livro mais importante que li nos últimos tempos.

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