Falar para a Parede

Pode ser qualquer tema. Da guerra na Ucrânia a um movimento anti-touradas, da crise climática à violação de uma mulher, dos braços desnudos da Cristina Ferreira à pirataria de livros digitais. Pode ser qualquer tema. Encontraremos sempre centenas de publicações e comentários odiosos nas redes sociais. Porque, na verdade, não é o tema que importa, pois não? É a possibilidade de se dizer o que se quiser, sem que daí advenham consequências.

Por detrás de um ecrã, sob um nome que pode ser mais ou menos perceptível, mais ou menos verdadeiro, vale tudo. Atiram-se todas as pedras, exorcizam-se todos os demónios, destila-se o ódio que se acumulou com a vida, como se fossem os outros os responsáveis pela revolta que lhes vai dentro. Os argumentos nem o chegam a ser. Não passam de um mero conjunto de frases soltas sem grande sentido, banalidades amontoadas em forma de discurso, mal escrito e mal estruturado (na maioria das vezes), com recurso a linguagem vulgar, de quem não tem os recursos necessários para mais. Um bocadinho como na comédia, em que o uso recorrente do vernáculo tenta colmatar a inabilidade do humorista para a função.

Há pouco tempo, alguns autores portugueses e a APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros), juntaram-se numa campanha de sensibilização contra a pirataria dos livros digitais, prática que tem vindo a crescer consideravelmente, provocando elevados danos a todo o sector e colocando em risco a futura publicação de autores nacionais. Ora, esta prática é crime. É proibida por lei, sujeita a pena de prisão ou coima, a reprodução de obras literárias sem o consentimento dos detentores dos respectivos direitos de autor. O que significa que eu não posso comprar um ebook e andar por aí a partilhá-lo com milhares de pessoas (porque é isto que acontece).

Eu diria que quem recorre a esta prática ficaria calado, a tentar que não dessem pela sua existência. À partida, ninguém quer ser apanhado a roubar, talvez não pela vergonha do acto em si, mas mais pela vergonha de não ter sabido fazer bem feito.  Só que não foi isso que aconteceu. O que aconteceu foi que houve quem se insurgisse contra os autores. Quem afirmasse coisas tão insanas como, “vocês são uns capitalistas”, “arranjem dois empregos se não conseguem viver disso” ou “o governo também nos rouba e não se vê ninguém a falar do assunto”. E, o meu argumento preferido, num exemplo claro de falácia informal, excelente para as aulas de filosofia, “os livros estão na internet, eu pago internet, logo tenho direito aos livros”(?!). A coisa deu pano para mangas. De repente, os autores passaram a ser o bicho-papão, que quer ver o seu trabalho reconhecido e remunerado (os malandros!).

Para lá de tudo o que se possa dizer sobre a pirataria dos livros, o que interessa para esta reflexão é a forma leviana como se opina sobre todos os temas, sem se parar um momento para pensar sobre eles ou ouvir o que o outro lado tem para dizer. Porque, na verdade, não é sobre o tema, pois não? É sobre o que vai dentro destas pessoas e não sobre o que se passa cá fora.

O caso da pirataria foi um exemplo light. Há casos muito graves de incitação à violência, de ameaças de agressão física e de bullying psicológico, entre tantos outros. Nada disto é novidade para quem navega por aí.

Estou bastante convencida de que estas pessoas, que gastam o seu tempo a destilar ódio nas redes sociais, são seres em busca de atenção. Precisam do palco que ali lhes é concedido, por ser o único onde ainda conseguem expor toda a sua verborreia de forma fisicamente segura e impune, conseguindo o feito de ir ganhando apoiantes pelo caminho.

A pergunta que tantas vezes se coloca daria, também ela, pano para mangas: como é que se põe travão a isto? Uma hipótese é o chamado, “cortar o mal pela raíz”, que é como quem diz, acabar com as redes sociais. Se os meninos não sabem brincar, acaba-se com a brincadeira. Mas tendo em conta que muitos de nós vivem em democracia (felizmente), essa não é uma possibilidade, e tentam-se encontrar outras formas. Desde legais, com aprovação de leis que condenam quem incita à violência, denigre ou ofende outrem, a tecnológicas, detectando publicações com o mesmo fim e eliminando-as das plataformas. Se tem resultado? Não creio.

Acreditando que é atenção o que estes seres procuram, estou convicta que muito do que se passa por esses redes se resolvia facilmente. Como? Ignorando. Não dando conversa. Não entrando em discussões. Porque é impossível discutir com quem não tem o nosso nível de entendimento. Tentem explicar física quântica a um miúdo de cinco anos (ou a mim, já agora), não vai resultar. É falar com uma parede, sendo que a parede tem a vantagem de não responder parvoíces. Ignorar. No limite, responder uma coisa qualquer que não tenha nada que ver, só para baralhar, e depois não voltar lá mais. A tortura do silêncio, sabem? Vão ver que toda essa gente, sem a discussão que é a sua kriptonite, vai acabar por se calar. Ninguém gosta de ficar a falar sozinho.

*Corpo Desnudo e a Roupa no Estendal é uma rubrica quinzenal sobre quem somos. Sozinhos e uns com os outros. Despidos e expostos. Na porta de casa, e a roupa estendida no fundo do quintal.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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