Desmemória

São 9h30 da manhã e dentro dela já só há vazio.

As cortinas são brancas, um branco-sujo que é a sombra dos anos, e esvoaçam em câmara lenta. Lá fora, talvez a chuva ou talvez o sol. Ela sabe que é o sol, consegue vê-lo a tentar alcançar-lhe os pés empantufados, consegue imaginar ali deitados todos os gatos que passaram pela sua vida, deuses iluminados e felizes no conforto do quentinho. Tem saudades da chuva. Ou terá saudades de tudo o que não é aquele momento. Ou terá desconforto de tudo o que é.

Na sala, recordações a pender das paredes, apoiadas nos móveis: o tempo a passar em monocromático, casamentos antigos, sorrisos, cabelos a brilhar. No invisível das fotografias está a cultura da censura e do medo. Mais retratos: os anos a correr em policromático, roupa colorida e óculos típicos da realidade amarelada dos anos 70, cabelo armado, maquilhagem exagerada, enchumaços dos anos 80. Sorrisos. Surpresa. Gargalhadas. As lembranças a gritar alegria e festa, como se tudo o resto nunca tivesse existido. Perpetuando mentiras. Uma felicidade pretérita que tinha mentido a promessa de um futuro incrível. Os fantasmas das memórias ali, na sala, entre os móveis e as fotos e as evocações, a assombrá-la. Assombram-na porque ela prende as reminiscências com correntes, bem atadas, bem longe da pele, para que não a toquem de novo. Não quer rememorar, não quer saber, não quer voltar ao passado. Os fantasmas que a acompanhassem; ela continuaria a ignorá-los.

O som dos ponteiros do relógio ecoam na sua alma vazia, na sua mente oca. O ruído mecânico e cadente faz eco de conversas que ela não sabe onde colocar. Pequenos sons que mais ninguém ouve mas que ela conhece bem, sim, conhece bem os espíritos que rodopiam à sua volta, querendo revelar segredos, tão perto que consegue sentir odores que há décadas não existem. Os ponteiros altos, tão altos que a deixam surda, dorida. Tapa os ouvidos, as mãos velhas e rotas por cima dos cabelos brancos, ralos, antigos.

Só a sala permanece igual. A sala e a varanda, cheia de flores, que sempre foi magnífica; a varanda do seu primeiro beijo; a varanda do seu primeiro crime; a varanda que a resgatava, hoje e sempre, da decrepitude do passar dos minutos. Está agora aberta e faz esvoaçar as cortinas leves. Uma brisa que é uma respiração e os cortinados são zéfiros, são bailarinas perfeitas, são espíritos da floresta. O resto da casa tem páginas e páginas de ideias espalhadas, imagens e imagens esquecidas, móveis e móveis antigos, roupas e roupas carcomidas. Conjuntos de nadas que se amontoam na demência dela, certa de que algum dia tudo encaixará ou tudo deixará de importar.

“Tem a comida no frigorífico, madame Mariette. Volto amanhã!” Uma cara sorridente à sua frente, depois uns cabelos a desaparecer com o som da porta da rua a fechar, a trancar, a solidão sentada na sala com ela. A varanda continua a suspirar, testemunha fiel.

Isso lembra-lhe uma coisa.

O nome dela não é Mariette, pensa. Não, o nome dela nunca foi Mariette.

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