Há poucos dias, o meu carro necessitou de cuidados extra e, deixei-o a passar uns tempos na oficina. Simultaneamente, e porque uma desgraça nunca vem só, o meu telemóvel resolveu ir a banhos. Para além destes dois episódios, sofri mais alguns pequenos inconvenientes e, alguém muito perspicaz aconselhou-me a que tomasse um banho de sal grosso, que elas andam aí. Não sei se tenho potencial para ser invejada, ou se acredito nessas coisas, ou se alguém me odeia assim tanto, mas banho nunca fez mal a ninguém e lá segui os conselhos, tendo vertido uma solução de água salgada por mim abaixo. Não devo mesmo ter perfil para a coisa, porque o cabelo ficou cheia de pedras de sal, pelo que prontamente me imaginei com a melena da medusa, confusa, emaranhada e seca, pelo que além de azarada passaria a estar não apresentável.Ora, não precisava de mais dramas existenciais.
É muito fácil habituarmo-nos às mordomias do dia-a-dia. Quando falta a água, sentimos isso. Quando a electricidade falha e não podemos levantar estores eléctricos, ou usar a placa de vitrocerâmica, ou a caldeira, sentimos a falta. Quando a máquina da roupa avaria, ou o elevador, ou deixamos o multibanco em casa, ficamos perdidos. Quando o carro pede folga, vemo-nos, que nem totós, a pensar em alternativas, ainda que essas tenham sido o nosso dia-a-dia em tempos idos. De repente, sem os facilitadores diários, temos necessidade de analisar cada passo, reavaliando, denotando a extensa dependência dos mesmos. E nós, que um dia vivemos sem carros próprios e sem telemóveis, parece que estamos num reality show daqueles passados em ilhas desertas, sempre em apuros pela sobrevivência. Ou quase, vá.
No meio do azar, tive quem me emprestasse um carro, quem generosamente me emprestasse um carro. Enquanto o meu telemóvel não foi substituído, tive também quem generosamente me emprestasse um telemóvel, de teclas… parece que afinal sou uma mulher de sorte. Ou o banho fez efeito. Ou ambos, quem sabe.
Habitualmente aproveito a ida para casa, ao fim do dia, para pôr os telefonemas em dia. Com bluetooth, evidentemente. Vulgarmente, sempre que me desloco a parques de estacionamento, uso o pagamento electrónico, leia-se via-verde. Quando me desloco a locais desconhecidos, uso o GPS. Sempre que estou impossibilitada de fazer chamadas, uso aplicações de mensagens para comunicar. Acordo com o alarme. Nos tempos mortos, actualizo-me com a consulta à net, páginas e jornais. Rio-me com os amigos, partilhando as parvoíces diárias.
Esta semana, quase não liguei a ninguém, porque o telemóvel em questão não lia os números do cartão. Andei com um papel ao lado, para não inserir contactos no telemóvel alheio, das 3 ou 4 pessoas indispensáveis à minha vivência. No tempo de condução, poderia ter aproveitado a ausência de chamadas para cantarolar, mas o carro em questão tinha seleccionadas rádios que não costumo ouvir, e não me senti à vontade para alterar as mesmas. Assim, escolhi uma delas, e lá fui eu, a sentir saudades do zapping que faço habitualmente, conforme a música ou o excesso de palavras. Fui a um centro comercial e fui o caminho todo a pensar que, não tendo via-verde, tinha que me lembrar de tirar o ticket, garantir que tinha moedas ou notas para efectuar o pagamento, de preferência antes de voltar para o carro e sair, na força do hábito. Tive um convite para um lançamento de um livro de uma amiga, numa cidade que conheço mal, e dei por mim a ir ao google e imprimir as instruções. Não consultei a minha página de autor, não soube responder ao marido que dinheiro tinha no cartão do supermercado, nem ao filho que me perguntou a previsão do tempo. Não respondi a umas quantas mensagens que me mandaram, até porque não sabia quem era o emissário, e algumas vezes optei por ligar, porque já não sei clicar 3 vezes em cada tecla para escrever, apesar de no passado o ter feito com agilidade. Não li nem escrevi crónicas. Não distraí os olhos com as novidades. Voltei ao século XIX.
Dei por mim a pensar quão dependente somos de coisas que anteriormente não nos faziam falta. Não me interpretem mal, sou apologista da tecnologia, e acredito que deveremos usar tudo o que estiver ao nosso alcance para nos facilitar a vida e nos concentrarmos no essencial. No entanto, não pude deixar de pensar como somos sensíveis a artefactos superficiais. Integramo-los na nossa vida, primeiro com a mais valia das paixões recentes, “ai que isto torna a minha vida tão facilitada”, mas quando falham, parece que nos esquecemos como viver sem… Deixa de ser uma ajuda, para tornar evidente que não somos nada sem eles. Arrisco a dizer que quase me parece aquelas pessoas que fazem questão de nos dizer: o que seria de ti sem mim? Atrevidos, no mínimo.
Não deixo de ser grata pelos empréstimos do carro e do telemóvel, evidentemente. Até porque me permitiram perceber quanto tempo perco com questões não essenciais no meu dia-a-dia. Foi como uma limpeza dos excessos tecnológicos.
Entretanto voltei a ter telemóvel. Também já fui buscar o meu carro à oficina. Não fosse a vergonha de ser vista pelos mecânicos, talvez tivesse afagado o volante com especial carinho. Ligo o meu rádio e na infantilidade de querer acreditar nas mensagens das coincidências e nos recados do além, com ou sem sal, entra-me pelos ouvidos o Confortambly numb dos Pink Floyd:
Ok
Just a little pin prick
There’ll be no more
Harm
But you may feel a little sick
Can you stand up?
I do believe it’s working, good
that’ll keep you going, through the show
Come on it’s time to go
Acabou-se o desconforto. Volto ao conforto tótó da tecnologia.
Subi o som e cantei entusiasticamente, orgulhosa do meu calhambeque.