E. já nem se lembrava do tempo antes daquele local. Ficava-lhe longe, numa época em que não se revia. Tinha o rosto marcado pelo infortúnio e pelas desavenças que tinha passado. Olhos escuros e penetrantes, boca de lábios finos e algumas rídulas precoces emolduravam aquela mulher que se vestia sempre de igual. Para quê mudar? Aqui os dias são todos iguais, cinzentos, sem história e cheios do mesmo. Quase não falava e os poucos monossílabos saíam por delicadeza ou obrigação.
A. tinha sido levada a cumprir uma ordem dada por uma voz estranha, dominadora e autoritária. Matou a família toda, numa noite em que o jantar era de restos. Esquartejou-os, guardou-os em sacos de plástico e congelou-os. Assim mesmo, friamente. No dia seguinte chorou-os e amaldiçoou-se pelo desvario. Foi ela que se entregou e forneceu todos os detalhes. Rapou o cabelo e nunca mais o iria usar comprido. Era o castigo pela culpa. As unhas estavam roídas até ao sabugo e uma cruz, muito escura, desenhada nas costas da mão direita mostrava o íntimo daquela mulher.
M. sorria mostrando uns dentes alinhados e certos. As sobrancelhas estavam bem delineadas e a maquilhagem era perfeita. Dir-se-ia que ia sair para um encontro com alguém importante e que precisava de ser impressionado. Todos os dias, invariavelmente, esperava por alguém que nunca chegava, mas ela não desarmava. Pintava as unhas às outras, dava conselhos práticos e disponibilizava-se para o que fosse necessário. No Tribunal não pensaram que ela tivesse sido capaz de castrar o marido e o sogro. Era lá possível? Uma senhora tão bem-posta e bem-falante. Cozinhou-os e deu aos cães? Escabroso demais para ser verdade.
não levantava os olhos do chão, revoltada por um disparate, um momento de maus pensamentos que a levaram aquele local. Cabelo curto, calças masculinas e camisas largas faziam-na passar despercebida num universo tão igual. O rosto estava carregado de raiva e de arrependimento. Não matarás, estava sempre a ouvir, era certo. Foi um lapso, um impulso que não conseguia explicar. O velhote não quis dar o relógio. Ela não precisava, era uma aposta estúpida. Mas queria ganhar. Não gostava de perder nem a feijões. Ele não deu e ela deu-lhe uma facada. A força desapareceu, o pulso soltou-se e ela ficou com o relógio. Ganhou. E uns anos ali dentro, fechada, porque foi apanhada. Perdeu-se.
V. tem olhos profundamente verdes, lembrando prados e cabelos tão luminosos que dão ao rosto um ar muito juvenil. Já não chora, aceita-se pelo acto que não deveria ter praticado. Coisas de miúdos, parvas. Gosta da cor de rosa e as tranças ainda lhe assentam bem. Fica mal naquele sítio, onde o sol é insuficiente e onde as confidências não existem. Está desenquadrada. É ciumenta e os ciúmes é que a tramaram. Era só ela e mais nenhuma. A outra já não existe. Mas olha para fora como se não tivesse ficado parada no tempo, na vida, no percurso que ainda desconhece.
R. fala dos filhos e das saudades que a matam. Não os vê crescer e não sabe o que andam a fazer. Os meninos são tudo para ela e tem consciência que agora eles estão entregues às feras, ao que der e vier. Maldito homem que nunca a apoiou, só se servia dela e depois deixava-a. Ficava a semente, a migalha do amor, que ia crescendo dentro dela e saía a uma velocidade vertiginosa. Eram muitos e amados, todos eles. Teve de se meter naquelas vendas para dar de comer aos meninos. Como era inexperiente e desesperada caçaram-na com facilidade. Anos que lhes vão fazer falta e cada um numa casa diferente. Raio de vida madrasta. Faz-se velha e os brancos já lhe afloram nas temporas.
F. tem vergonha, torce as mãos e a voz falha-lhe com frequência. É um nó na garganta. São dois, como acaba por dizer. Já não aguentava mais. Alguém tinha que o fazer. Aquilo não era vida, era medo. Não tinha descanso. Não podia dormir que ele aparecia logo, pronto a montar-se em mim, como um animal. Foram muitas as vezes, tantas que se gastaram. Deu frutos e ela não queria mais. Perdi a cabeça, diz com voz trémula. Mas dois nós porquê? Sabe? Ele era meu pai, não devia ter feito o que fez, não é correcto. E o bebé era meu irmão e filho. Não é normal. Que vida seria a dele? Já não vai ser infeliz e ele nunca mais faz nada a ninguém. Não, não me arrependo. Estou em paz e já consigo dormir sossegada. Homens nunca mais!