Abraçou-a de olhos fechados. O corpo dela, o cheiro dela, o choro dela foi o que a impediu de ceder àquela fenda que se abrira silenciosamente no seu interior.
Abraçava a pessoa que melhor conhecia mas que lhe era tão desconhecida. Odiava sentir isso, sentir que aquele cabelo que tantas vezes tinha penteado, aquela cara que tantas vezes tinha beijado, aquela pele que encostava agora à sua era de alguém que afinal não conhecia assim tão bem. O abraço tornou-se mais apertado e afastou o incómodo da dúvida, trouxe de novo a intimidade. Como é que não conhecemos quem parimos?
Abraçou-a de olhos fechados. Os braços dela, os soluços dela, a respiração dela foi o que a agarrou para não se desmontar ali mesmo.
Aquele abraço tinha chegado depois, muito depois do pânico e da confusão. Muito depois de ter saltado do comboio quase a andar enquanto a cabeça gritava desnorteada, descompensada, des-tudo. Muito depois de ter desligado o telefone com as mãos a tremer, a saliva pastosa que sabia a medo e ela não a conseguia engolir, só piorava o nó que lhe derretia as entranhas. Muito depois de estar a rir às gargalhadas com a família, numa celebração qualquer. Muito depois do suicídio da filha.
Abraçou-a de olhos fechados.
Num minuto tudo muda, quebra como vidro, une opostos. Colidem universos paralelos. A culpa das gargalhadas ingénuas. Não conseguia afastar do peito que com cada riso a filha tinha tomado mais um comprimido, que com cada brinde a filha tinha bebido mais um pouco de veneno, que com cada dança a filha tinha dado mais um passo em direcção ao abismo. E ela nem tinha sentido que uma parte dela estava derrotada, triste, desgastada. E ela nem tinha sentido que a filha se ia rasgando por dentro, que se ia rasgando e afastando dela. E ela nem tinha sentido que algo estava errado, que tudo estava errado. Ela nem tinha sentido.
Abraçou-a de olhos fechados enquanto pensava em tudo isso: “é o teu choro e o teu cheiro que me salvam, filha, é o teu abraço e a tua respiração que me mantêm inteira”. Fingiu que era tudo mentira, acreditou que a ilusão é que era real. Mas não era. Não era, porque a filha não respirava. A fenda que se abrira silenciosamente no seu interior era na verdade uma fractura exposta, gigante, podre, moribunda. E ela teria de atravessar a vida assim para sempre, em necrose.
Abraçou-a forte e de olhos bem fechados. Abraçou-a sem intenções de a largar, porque iria desfazer-se. Abraçou-a como se fossem apenas uma, como se nunca tivessem deixado de o ser.