Exaltação da brutalidade

De onde vêm os boçais?

Às vezes gostaria de saber responder a isto. Seria importante conhecer-lhes o trajeto, não tanto filosófico, mas efetivo do de onde vens e para onde vais, talvez dessa forma pudéssemos evitá-los, bem como a essa crueza que é a brutalidade.

Contudo, julgo que exista uma distribuição regular e homogénea pelo mundo, que ande-se por onde andar, aí estão eles para nos presentear com as grosserias costumeiras. Há até quem aposte na existência de um algoritmo social que nos permitiria, em cada dia, encontrar pelo menos um. Não sei se assim será, mas o facto empírico é que eles andem aí… disso não haja qualquer dúvida.

Refiro-me, como será bom de ver, àqueles que, por perfil ou personalidade, fazem do seu modo de ser o antónimo do requinte e da delicadeza. Dispensam o uso da educação e do saber-estar,  sendo que alguns dos quais até se vão gabando de conseguirem perturbar os outros com os seus comentários, tons de voz ou mesmo actos físicos sem qualquer inibição.

Ao contrário de algumas línguas, a portuguesa permite a clara distinção entre o ser-se bruto e o estar-se bruto, o que não é mais do que um ser-se de curta duração. Os que são brutos, dificilmente deixarão de o ser, até porque algumas vezes nem disso têm noção, ou não vêm qualquer necessidade de o deixar de ser. Já estar bruto, é coisa que mais cedo ou mais tarde acontece a todos. E às vezes, vejam lá, pode ser bom. Palavra que sim.

O uso da subtileza é arriscado. Pressupõe que o outro saberá lê-la e interpretá-la. É um pouco como os tratamentos homeopáticos, vai-se libertando a nossa posição em pequenas quantidades, sem fazer uso da assertividade. Procura-se passar a mensagem de forma sub-reptícia, sem melindres, mas ainda assim de forma efectiva. Se o outro for inteligente e de bom trato, perceberá, que para bom entendedor meia palavra basta. E assim, exprimimo-nos, somos honestos, esclarecemos, mas sem dor. Ou assim supomos.

Não obstante, o outro insiste por vezes em algo que nos desagrada, mas que julgávamos já ter demonstrado e resolvido com a nossa intervenção ténue. E nós, mais uma vez, usamos da esmerada educação para fazer ver o outro que está a ser inconveniente, que até já falámos disso, e repetimos o que dissemos antes, ainda serenamente.

E neste ponto, na minimização da clareza, pergunto-me se não é uma cobardia não por os pontos nos is de forma inequívoca. Não dizermos, por exemplo, a alguém que tem sentimentos para connosco, que não existe reciprocidade. Ou que discordamos totalmente do seu ponto de vista. Vamos andando em pontas, a pisar ovos, para não ferir suscetibilidades, achando que o que fazemos ou dizemos permite a conclusão do que sentimos.

A questão é que esse é um caminho que permite que o outro, não entendendo ou fazendo-se de tal, continue a manter o mesmo comportamento que tanto nos enfada. Porque afinal nunca dissemos claramente o que pensámos, o que pode ser atribuído a timidez, incapacidade de expressão ou mesmo concordância. E se tivermos o azar dessa pessoa ser adepta do água mole em pedra dura tanto dá até que fura, não há delicadeza que nos salve.

E é então que a brutalidade assoma, no extremo cansaço de tentar levar o assunto com compreensão, por dias ou meses. Descobrimos que somos também capazes de descer ao nível do ríspido e rude, tanto mais quanto maior a revolta de ter andado a perder tempo com quem não sabe ler sinais significantes.

Tudo isto era escusado se tivéssemos usado da assertividade em início de conversa, ou pelo menos assim que a subtileza falhasse o propósito. Mas as tentativas contínuas de levar o assunto a bem, coadjuvadas pela obstinação do outro, descamisam a educação que temos, e levam-nos a encontrar um bruto em nós.

Ainda assim, um bruto que nos salva dos inconvenientes alheios.

Se preciso for.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Olivia Benson

Next Post

Mais (ou menos) Habitação

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Mais humanos

Esta semana o Ébola voltou às bocas do mundo, desta vez com a escolha da Revista Time para distinguir como…

Impasses

Ao acompanhar os acontecimentos destas últimas semanas, apercebo-me que o mundo em que vivemos tem em si uma…

Da Natureza do Trabalho

“Escolhe um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar um dia da tua vida” Confúcio Seria poético ter sido…