Feliz Natal

Foi uma passagem de Tempestades de Aço, de Ernst Junger, um bom livro sobre a I Guerra, que me levou atrás, ao ano em que vi o filme Feliz Natal:

Na manhã seguinte, quando, completamente encharcado, deixei o túnel, não podia acreditar no que os meus olhos viam. O terreno, até então marcado pela solidão da morte, estava movimentado como uma feira. A lama tinha empurrado os ocupantes de ambas as trincheiras para os parapeitos e, entre as defesas de arame farpado, tinha-se desenvolvido um contacto animado e havia intercâmbio de aguardente, cigarros, botões de uniformes e outras coisas. A multidão de figuras cor de caqui que jorravam das trincheiras inglesas até ali tão desertas era impressionante; parecia uma assombração em plena luz do dia.

O filme de 2005, uma coprodução francesa, alemã e britânica, com alguns rostos familiares do cinema europeu como Guillaume Canet, Daniel Bruhl (Goodbye Lenine) ou Gary Lewis (Billy Elliot) conta o episódio verídica que aconteceu no Natal de 1914 durante a I Guerra Mundial.

Ainda que possamos defender por princípio que todas as guerras são estúpidas, evitáveis, interesseiras, etc… a I Guerra talvez seja uma daquelas modorras que, durante quatro anos se perpetuou numa repetição de tiros, mortes, ataques, gaseamentos, trincheira à frente ou atrás, que a dada altura, dada a imobilidade das posições que ameaçava eternizar-se, já poucos sabiam as razões por que lutavam, mas sentiam bem demais a barbárie que sofriam.

Tamanha disparidade entre a violência perpetrada e, a dada altura, a dissolução das razões e a estagnação das posições, levou a que a guerra de 14-18 se transformasse num dos conflitos que melhor retratou a matança apenas porque sim.

Antes disso, no início do confrronto, talvez porque a esperança afastasse da ideia de todos a longuíssima privação a que os soldados iriam estar sujeitos, por uma noite a guerra parou e soldados de ambos os lados do arame farpado confraternizaram. Aconteceu na semana de Natal de 1914. As trincheiras foram abandonadas na frente ocidental e as tropas inimigas trocaram presentes, confraternizaram e quase jogaram futebol, num cessar-fogo não oficial.

Se Feliz Natal fosse apenas um filme, ninguém acreditaria, mas foi uma história real. Inacreditavelmente real, num outro tempo em que nos combates aéreos eram respeitados os adversários (existem relatos de que, à falta de munições de um avião, o avião inimigo aguardava que o primeiro retornasse à base para voltar a carregar e a batalha pudesse prosseguir). A brutal ausência de senso nestas imagens ganha corpo no contraste que trazem a carnificina da primeira utilização de armas químicas em conflito, com o gás mostarda, a limpeza étnica dos Arménios às mãos do Império Otomano, ou os fuzilamentos de reféns sobreviventes dos diversos lados deste caos.

No entanto, no primeiro Natal da Guerra a esperança num mundo diferente era ainda uma realidade e aqueles homens, que por momentos esqueceram as razões (que muitos desconheciam, não necessitando assim de grande esforço pois não poderiam esquecer o que não sabiam) por que lutavam contra o inimigo, puderam testemunhar e participar num acto que hoje seria impossível. Feliz Natal mostra-nos essa centelha de esperança numa noite de há quase cento e dez anos.

Talvez seja um filme difícil de compreender. Talvez alguns acreditem ser apenas cinema. Não é: aconteceu. Por mais estúpido que tenha sido perante o que aconteceu depois, mas aconteceu. Houve Natal na Europa em 1914. Numa guerra em que houve milhões de mortos e feridos (os números variam entre oito e vinte e dois milhões de mortes, e vinte a vinte e três milhões de feridos, boa parte deles cifrando-de em milhões de inválidos). Contudo, houve Natal.

Teria feito muita diferença se não tivesse havido? Em termos práticos, pouca. Na dimensão da esperança, humanizou cada um daqueles homens, mostrou-nos vontade e sentimento, pensamento e atitude. Por uma noite ou uma semana não foram apenas peões mandados por quem pouco sabia do horror das trincheiras, mas foram gente. Feliz Natal traz-nos um retrato dessa gente esquecida. Alguns foram julgados.

[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]

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