Ana

Pequenina e curvada quase passava despercebida. Todos os dias era a primeira a chegar e fazia tudo funcionar. Num local onde ainda existiam caldeiras, a Ana, Menina Ana, era a que sabia como não deixar morrer a chama.

Não é de amor que se trata ou talvez seja. Não do romântico, mas, sim, do altruísta, daquele que engloba muitos e outros que ainda irão surgir. Era tão certa como o relógio mais afinado do mundo. Ninguém a via, mas ela existia.

Dei por ela num dia em que tive que fazer o inventário. Nunca tinha mergulhado na cave e era um local com tantos recantos como encantos. Frascos e embalagens com letras, eram o bastante para identificar os artigos.

Sentei-me numa cadeira desengonçada e ela apareceu, tal como as santas, sem barulho nem espalhafato. Pelo meu ar admirado disse apenas: “Eu sou a Ana.” Confesso que mordi o lábio pela minha falta de empatia. Era aquela senhora mínima que nos aquecia a todos e ninguém lhe agradecia.

Tínhamos a possibilidade de andar de manga curta em pleno Inverno e de usufruir do chão quente. Eu até andava descalça a maior parte dos dias e a ela, sem saber, o devia. Ana, o anjo que a todos chegava.

Sem querer começou a falar e fiquei a saber da sua vida de retiro e dedicação. Filha “duma mulher da noite, da vida fácil, tá-me a perceber, Miss?“, nunca foi de afetos nem de amores, apenas de luta e sobrevivência. Vivia numa casa ali perto, num quarto solitário, cheio de bolor e tristeza, mas que lhe chegava para o essencial. Não teve pretendentes e aquele foi sempre o seu emprego. Fez de tudo, desde lavar os pratos, a despejar as arrastadeiras até que a colocaram na cave para tratar da roupa.

Foi aí que descobriu a sua paixão. Bordava nos lençóis do hospital, as iniciais da casa e era feliz. Rapidamente começou a receber encomendas e o sorriso passou a fazer-lhe companhia. Não sei quantos anos tinha, somente que nunca faltava e que se podia contar com ela para tudo. Ela estava sempre pronta.

Num Natal entendi que lhe havia de oferecer uma lembrança. Era uma medalha de uma santa que coloquei numa caixa pequena, assim como ela, embrulhada com muito amor e carinho e rematada com um laço. Desci as escadas e levei-lhe a minha prenda. Chorou umas lágrimas infantis e virgens. Nunca ninguém se lembrava dela. Doeu-me com força.

Comecei a ter uma rotina. Antes de entrar ao serviço ia fazer-lhe uma breve visita. Eu chegava e ela partia. Sabia que me cuidava, pois, os meus pés sentiam o quente que ela envia e não tinha frio. O calor não era só da caldeira, mas também do seu coração que me abraçava com força doce.

Bordou-me um saco de guardanapo. Ainda o tenho. Será uma prenda para sempre. Com ponto muito certinho, estava desenhada uma casa, uma árvore e o meu nome: Miss. Era assim que me tratavam e não tive coragem de alterar a sua ideia.

Um dia estava à minha espera. Tinha uma carta na mão. Não sabia o que aquilo era. Leu, mas não percebeu, como muitas outras coisas que lhe passaram ao lado na vida. Parece que estou a ver a sua figura amorosa, com um carrapito e sempre vestida de branco, as mãos juntas e olhar sereno.

As palavras que lhe li tiveram o condão contrário da intenção. A partir do dia x, bem próximo, estaria reformada. Ana chorou. O que queria aquilo dizer? Já não precisa de vir trabalhar mais. Pode ficar em casa. “Ah! E que vou fazer aos dias que me sobram?” Pumba! Um murro valente no estômago!

Ana nunca tinha faltado um único dia e as suas férias eram passadas na cave. Pagavam-lhe para que nada faltasse. Ela não se importava. Não tinha quem se importasse com ela. A reforma, o que muitos desejam, não era o seu sonho, antes pelo contrário, seria o seu pesadelo.

A minha juventude e inexperiência de vida deu-me para a abraçar. Senti uma pessoa muito querida a agarrar-me com força. Não tinha quem lhe dissesse que era gostada nem que era tão bom ser assim abraçada. Ficámos uns momentos e fiz um esforço enorme para não chorar.

Na semana seguinte a menina Ana já não veio. Só eu dei pela sua falta. Um vazio enorme estava no meu coração. Alguém a teria que substituir. Desci as escadas e fui ver quem era. Uma inglesa, de nariz empinado e dentes tortos, escorraçou-me logo. “This is my place.” Ficámos logo acertadas.

Pedi a morada da Ana. Era confidencial. Comigo são precisos muitos nãos para desistir. Consegui-a. Fui à pastelaria que mais gostava e comprei algumas miniaturas. Umas eram em forma de coração e tinham coco. Subi as escadas do prédio onde vivia. Uma senhora sorridente abriu-me a porta. A Ana estava no seu quarto. Admirou-se. Não recebia visitas.

Triste vida a desta mulher. Não tinha mais ninguém a quem se agarrar nem com quem carpir. Estava completamente só. Gostou dos bolos e do calor que lhe levei. Voltei a repetir a visita. Pedi-lhe que não desistisse. Começou a bordar para fora. Arranjei-lhe algumas clientes que ficaram muito satisfeitas. Estava feliz.

Os meus dias naquela casa terminaram e segui para outras bandas. Ia sabendo da Ana e dos seus talentos artesanais. Era apreciada. Um dia voltei a subir aquelas escadas e a lhe dar o nosso abraço. Estava muito velhinha e ainda mais encolhida. Fui sempre a Miss, dito com um sorriso envergonhado, mas muito querido. Que delícia ouvir aquela palavra!

Despedi-me dela numa manhã de nevoeiro. Assim confundiu-se com as minhas lágrimas. Saíram com força de quem sabe que ela era única. Apenas eu e a dona da casa onde ela vivia. Um vazio enorme. Porra de vida. Como se pode passar tão despercebido? Ela era o calor, a chama que nunca morria e quase ninguém sabia da sua miserável e triste existência.

Um destes dias, ao abrir uma gaveta, deparei-me com o presente que ela me deu. A Ana voltou para mim e para o meu abraço logo agora que são escassos, mas essenciais. Passou pela vida de muitos que não a viram, mas fez toda a diferença na minha. Ainda lhe sinto os passos miúdos e a sua voz assustada a perguntar se podia falar.

Há pessoas que passam por nós como anjos cheios de véus de tanto. A Ana será sempre aquela que me aqueceu e que me esperava para um dedo de conversa. No dia em que fomos as duas, como quem não quer a coisa, visitar o jazigo do poeta, selámos a nossa união.

Até um dia, querida Ana…

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