Memória Oral

O meu avô faleceu há dois anos, a minha avó degrada-se com uma demência. Quando era miúda, muito antes de haver podcasts, tentei gravá-los várias vezes. Tinha um gravador, cuja origem não me recordo, com o qual brincava desde criança, aos programas de rádio.

Corria sempre mal, e eu nunca os consegui gravar. Ou eles se recusavam ou ficavam intimidados perante o gravador.

Lembro-me da minha mãe oferecer uma vez ao meu avô “O livro em branco”, que nada mais era que um caderno com uma encadernação mais cuidada. Para o meu avô escrever os seus poemas. Sempre ouvi dizer que o meu avô era um poeta, mas raras vezes o ouvi declamar. Nunca se soube bem quais eram os versos originais e quais pertenciam ao cancioneiro popular. Ele dizia cada vez menos versos, e eu quase nunca lhos ouvi. De ano para ano abandonava essa sua característica. E ele nunca escreveu nada no caderno. Os seus poemas nunca ficaram escritos, nunca ficaram gravados.

A minha avó era prosadora, contadora de histórias. Das que se sentavam à lareira de roda da panela de cozido. Há contos que ela me contava que só fui descobrir em recolhas muito completas, no meio universitário. Ela era também um livro de história, das histórias das gentes, da família. A minha avó transportava em si histórias com mais cem anos que ela. A sua mente era um livro. Ela até me contava as histórias de família do meu avô (que ele lhe deve ter contado, ou que ela deve ter ouvido junto do seu núcleo). Ela não se esquecia de nada, agora esqueceu-se de tudo. Como pode a demência atingir um livro vivo?

A minha avó era praticamente analfabeta. Aprendeu a ler e a escrever em adulta, e eu acabei por aprender pendurada no seu processo de aprendizagem. Quando era criança eu ajudava-a a organizar os congelados, para ela não escrever “burrego” nas etiquetas. Lia muito. Lia os livros Uma Aventura e o jornal da igreja. Depois deixou de conseguir ver as letras do jornal da igreja, que eram muito pequeninas.

Isto para explicar a razão dela nunca ter escrito as suas histórias. Nem eu as consegui gravar. E ela hoje já não sabe nenhuma história. Aconteceu-me ser o repositório desta riqueza. É por isso que escrevo. Mas sou um repositório incompleto. Acho que perdi tanta coisa por nunca ter gravado aquelas histórias. E depois sou inventora de histórias. Vou recriar tudo, torná-las literárias, despojá-las do realismo.

Às vezes troco impressões sobre essas histórias com a minha mãe. Mas ela sabe outras coisas, outros pormenores. Eu e ela escreveríamos dois livros diferentes, seríamos duas famílias diferentes.

Mesmo antes de partir, a memória prega-nos partidas. A transmissão oral faz-se de perdas e de recriação. Em pleno século XXI, tecnológico, Inteligência Artificial, etc., consigo transportar comigo esta riqueza oral. Estou presa entre o passado e o futuro. É sem dúvida isto que me levou a escrever.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico
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