Por um final dos tempos. Por um mundo melhor.

Propor-me falar sobre política, quando a minha especialidade é a mente humana e as religiões, poderia parecer ousado ou até desconexo, não fosse a profunda ligação que todos os temas estabelecem entre si. Quando falamos de extremismo religioso, normalmente fazemos a abordagem de um ponto de vista politizado e pouco científico, seja no que toca à história das religiões ou à própria psicologia do mártir. Esquecemo-nos que o martírio é uma das pedras basilares das religiões Abraâmicas, não apenas no Islão, mas no cristianismo também. Sendo o martírio comum, porque é tão difícil entender o outro lado? Quando se fala de terrorismo, na maioria das vezes, o interlocutor acredita estar a falar de alguém igual a si mesmo. Crê que o suposto terrorista pensará como ele próprio e não se apercebe de que a visão subjacente a todo o movimento é apocalíptica. (Atenção que nem todos os movimentos apocalípticos são violentos ou terroristas. As Testemunhas de Jeová são um movimento religioso apocalíptico, com outros pressupostos pacíficos).

Do ponto de vista de um pacifista, rapidamente entenderemos o discurso religioso que incita à violência como louco e descompensado. O próprio Corão rejeita o suicídio e a violência contra inocentes e os seus fiéis têm dificuldade em entender o que move um extremista violento. E se mudarmos a nossa interpretação do fenómeno, vendo a agressão como defesa? Fará algum sentido? Em vez de patologizar o discurso, devemos – sim – procurar entendê-lo e perceber em que pressupostos assenta. A única forma de exercer um contra-terrorismo eficaz, é desenvolver empatia e alguma sensibilidade cultural, que permitam colocar no lugar do outro e, assim, entender a sua linguagem simbólica e missão / propósito no mundo actual. Porque vimos o ataque de 11 de Setembro como um acto agressivo, mas, posteriormente, entendemos a invasão americana ao Iraque como uma cruzada divina? Sentados no nosso “lugar” mental e social, temos a tendência para pensar que o “teu Deus faz-te cometer actos violentos, mas o meu Deus só quer justiça e liberdade”. Esta forma de processar as acções, acaba por nos fazer não entender o que move um terrorista, venha ele de que flanco vier.

Temos então de perceber que, em todas as circunstâncias, o ataque é percebido como defesa. O extremista não está a atacar aleatoriamente, mas a eliminar a raiz do mal e, como tal, a defender-se e permitir a construção de um mundo melhor (apocalipse). Todas as visões apocalípticas acreditam na luta do bem contra o mal, na ideia de que os justos são/estão oprimidos, na existência de um mundo transcendente e na convicção de que irá haver uma intervenção divina como recompensa para os puros. Claro que, enquanto os apocalípticos pacifistas acreditam que o mundo que ambicionam virá, mas que não podem influenciar a sua vinda, os mais radicais acreditam conseguir eliminar o mal com as suas acções, acelerando o fim dos tempos. Esta violência redentora é uma das premissas base das tradições Abraâmicas. Contudo, também no Budismo encontramos exemplos da teologia que pretende eliminar o mau karma do mundo.

Hoje em dia, assistimos a um caso mais sui generis. Testemunhamos, de sofá, a ascensão de um novo e curioso grupo “pseudo-apocalíptico”: os negacionistas. Tal como os restantes extremistas, os negacionistas vêem a ciência e o conhecimento científico como o mal encarnado, o alvo a abater. Sentem-se oprimidos, asfixiados, controlados por chips imaginários, sociedades secretas mitológicas e lutam pelo fim do mundo antigo, na emergência de um novo mundo, onde o grande mal da ciência não existe e poderemos todos viver livres, por entre chás mágicos, imposição de mãos, rezas e – sobretudo – sem vacinas. Qual é, na verdade, a diferença entre os grupos terroristas extremos e este novo grupo dos negacionistas? Como nos diria Bruce Lincoln, a religião começa com um discurso humano, posteriormente construído como divino. Ou seja, a religião é fundada por palavras dos homens, revestidas de poder sobrenatural. Muitas vezes, estas pessoas agem de boa-fé, mas, na sua maioria, não. O que impede, então, estes novos grupos de se constituírem como tal, com base na sua espiritualidade anti-ciência?

Não sendo possível afastar as armas de um potencial terrorista, o melhor será transformar a ideologia dos seus membros marginais e potenciais recrutas. Este é um trabalho a longo prazo e devemos entender que todos os apocalípticos se vêem como oprimidos, ainda que essa opressão possa ser apenas perceptual. A sua perseguição só lhes irá dar uma maior motivação para a causa. Sugiro esta reflexão e estudo mais aprofundado sobre os novos grupos que, durante a pandemia, têm emergido por entre convicções mais ou menos religiosas. Este fenómeno – escrevam – ainda vai dar que falar.

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