Quem já ouviu a expressão “o sono é parente da morte”? É assustadora, não é.
Há até quem diga que sempre que dormimos aproximamo-nos das fronteiras da morte. Os entendidos e estudiosos do sono dizem que o nosso cérebro altera profundamente o seu comportamento e objetivo, obscurecendo a nossa consciência. Que durante algum tempo, ficamos quase inteiramente paralisados. Que os nossos olhos giram veloz e periodicamente por detrás de pálpebras fechadas e os músculos minúsculos do nosso ouvido médio, mesmo em silêncio, mexem-se como se estivessem a ouvir e que por vezes até achamos que podemos voar. Deve ser nessas alturas que acordamos aflitos porque nos sentíamos a cair do alto de arranha céus.
Por onde andamos durante o sono? O que fazemos durante aquelas horas?
Aristóteles, por volta de 350 a. C., escreveu o ensaio “Do sono e da insónia”, queria respostas para as duas questões. Contudo, durante os 2300 anos seguintes, ninguém encontrou uma boa resposta. Thomas Edison, o que nos deu a lâmpada, disse que “o sono é um absurdo, um mau hábito.” Ele acreditava que um dia conseguiríamos dispensá-lo por completo. No século 20, o psiquiatra alemão Hans Berger inventou o electroencefalógrafo, que regista a actividade eléctrica do cérebro. O estudo do sono saiu do campo da filosofia e migrou para o da ciência.
Nas últimas décadas, os especialistas do sono, concluem que este tem grande importância para nossa saúde física e mental. Que o “padrão de sono-vigília ” é uma característica essencial da biologia humana, uma adaptação para viver num planeta em rotação contínua. Falou-se, nas décadas de 80 e 90, num relógio molecular existente no interior das nossas células, cujo objectivo é manter-nos sincronizados com o sol. E os três cientistas responsáveis por essas descobertas ganharam o Nobel da Medicina em 2017.
Alguns investigadores do assunto, disseram recentemente que, quando o ritmo circadiano é perturbado, corremos mais riscos de padecer de doenças como diabetes, insuficiência cardíaca e demência. Se calhar dormir até è mesmo importante e faz-nos bem então. Dizem-nos que o desequilíbrio entre o estilo de vida e o ciclo solar tornou-se epidémico, e que estamos a ser torturados pela privação de sono, mas que não sabemos, ainda.
Aparecem cidades que nunca dormem. Os génios que só dormem 3h por noite. A noite já não é escura, porque proliferou a iluminação eléctrica, seguida pelos televisores, computadores, telefones inteligentes e ultimamente as chamadas grinaldas de luzes de presença. Aquelas que decoram a cabeceira da cama como se fosse uma árvore de natal, que se compram no IKEA, no Lidl e até ficam “giras” no quarto. E há séries para ver à noite, trabalho que trouxemos pra casa, redes sociais pra atualizar, likes em falta nas publicações dos outros ou roupa para passar a ferro por causa da tarifa bi-horária.
Lutamos contra os bocejos com cafeína, contra as olheiras com cremes ou óculos escuros e ter um ar de cansado até parece dar uma boa reputação para os negócios, a de pessoa trabalhadora até à exaustão. Quem é que já não se sentiu tão ensonado numa reunião que quase dormiu acordado? Ao “dormir enquanto presente”, os japoneses chamam “inemuri”, é uma forma especial de sesta, na qual se adormece num local impróprio, diz Brigitte Steger, perita em estudos nipónicos da Universidade de Cambridge.
A luta contra o sono tem sido tanta, que ter uma boa noite de sono para muitos já é algo que só lá vai com soporíferos. Talvez dormir mesmo não seja um luxo ou sinal de preguiça, se é uma necessidade fisiológica, toca a dormir. Não se conhecem animais que, em estado normal, não durmam.
“O sono possibilita o repouso, a reorganização e o rejuvenescimento do corpo e do cérebro, para que não se sinta cansado no dia seguinte. Estudos mostram como o sono à noite está directamente relacionado com o nível produtivo do dia seguinte. O sono é essencial para que o seu corpo e mente se sintam frescos e, portanto, a funcionar bem no dia seguinte”, disse Marta Gonçalves, presidente da Associação Portuguesa do Sono.
Parece que afinal a falta de sono faz muito mais mal ao cérebro do que imaginávamos: é como se o órgão se comesse a si mesmo.
Já se criaram manuais sobre a higiene do sono, já se escreveram histórias para dormir e já existem clínicas para dormir e especialistas de sono.
Conhecem o Isleep? Uma plataforma digital do Cento de Eletroencefalografia e Neurofisiologia Clínica (CENC) — da Professora Teresa Paiva que aborda temas relacionados com o sono numa perspetiva científica e de divulgação, destinando-se a profissionais de saúde, doentes e visitantes em geral. Teresa Paiva, é médica neurologista especialista em medicina do sono. A criação de conteúdos da plataforma é desenvolvida por uma equipa multidisciplinar na área da psicologia, jornalismo e cultura. Lê-se por lá que: “O sono ou a falta dele não fazem apenas parte da vida de cada um de nós, ora como sensação de bem-estar quando dormimos, ora como fonte de preocupação e até de sofrimento quando não conseguimos fazê-lo. O sono é também património coletivo de uma cultura que, através da filosofia, da ciência, das artes e da literatura, sempre o estudou e retratou em busca de decifrar os seus mistérios. “
Será hora de acordar e começar a andar em busca do sono perdido?
Teresa Paiva diz-nos que os ciclos circadianos nos colocam em sincronia com o Planeta Terra, com a noite e o dia. Que é preciso não esquecer que somos animais diurnos, ao contrário, por exemplo, da coruja, do mocho, do rato. Estamos feitos para sermos animais diurnos, a parte nuclear do nosso dia tem de ser diurno. É um sistema que foi aperfeiçoado ao longo de milhões de anos.
Recentemente, o Cardeal de Lisboa disse numa entrevista que “devemos dormir, quando a natureza está a dormir”.
Voltando a Aristóteles e às suas perguntas e inquietações sobre o sono. Será a derradeira questão: Porque motivo dormimos ou por que motivo nos damos ao trabalho de ficar acordados, se há durante o sono um mundo alternativo e tão incrível ao nosso dispor.